Cochambrança Neomedieval: anti-colonialismo e conservadorismo em Ariano Suassuna

Neomedieval cochambrança: Ariano Suassuna’s anti-colonialism and conservatism

Marcelo SANTIAGO BERRIEL
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense
Professor Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2792-4786
msberriel@ufrrj.br

Resumo: Este artigo objetiva apresentar argumentos em favor do conceito de neomedievalismo e sua aplicabilidade em um texto de Ariano Suassuna. Primeiramente, exponho parte das discussões em torno da escolha entre os conceitos de medievalismo e neomedievalismo, defendendo tanto a historicidade do último quanto a perspectiva decolonial no campo específico do neomedievalismo latino-americano. Em seguida, demonstro a aplicação prática das reflexões anteriormente mencionadas em uma análise do texto As Cochambranças de Quaderna, peça de 1987 de autoria do escritor paraibano Ariano Suassuna.

Palavras-chave: neomedievalismo; decolonialidade; Ariano Suassuna; Nordeste do Brasil.

Abstract: This article deals with the concept of neomedievalism and its applicability to a text by Ariano Suassuna. First, I demonstrate part of the debate on the choice between the concepts of medievalism and neomedievalism defending both the historicity of the latter and the decolonial perspective within the specific field of Latin American neomedievalism. I then demonstrate the practical application of the above ideas in an analysis of the text As Cochambranças de Quaderna, a play written in 1987 by the writer Ariano Suassuna, a native of the state of Paraíba.

Keywords: neomedievalism; decoloniality; Ariano Suassuna; Brazilian Northeast.

Não repare não, mas, no meu mundo, o Cristo é negro e o Diabo é branco.

—Ariano Suassuna, As Cochambranças de Quaderna

A call to expropriate the expropriators, it is radical precisely in the sense of going to the root of the matter and asking what may be involved in a historiography that is clearly an act of expropriation.

Ranajit Guha, History at the Limit of World-history

Recibido: 12/03/2024

Aceptado: 02/04/2024

Cómo citar: Santiago Berriel, M. (2024). Cochambrança Neomedieval: anti-colonialismo e conservadorismo em Ariano Suassuna. Neomedieval, 1, 93-117. https://doi.org/10.33732/nmv.1.11

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“É preciso acabar com o relato contínuo”, disse Paul Veyne em sua aula inaugural no Collège de France, texto que, posteriormente, se transformaria no livro O Inventário das Diferenças (Veyne 53). Como parte de uma linha argumentativa que intentava defender uma visão particular sobre o método e o objeto da história, é possível que a frase citada (bem como suas consequências teóricas) tenha passado despercebida por muitos leitores do historiador francês. Um possível desdobramento é associar a frase de Veyne à crítica da narrativa da modernidade. Lembremos: não há decolonialidade sem a desconstrução da macronarrativa da modernidade/colonialidade (Mignolo 109). Não estou atribuindo um novo traço às ideias de Paul Veyne, tampouco defendendo alguma influência dele nos pensadores da decolonialidade. De fato, não há perspectiva decolonial nos textos do historiador francês em questão, mas é possível afirmar o seguinte: quando a perspectiva decolonial desconstrói a versão eurocêntrica da história, ela compartilha do ceticismo de Veyne que concebe o continuum espaço-temporal somente como “um quadro didático a perpetuar a tradição preguiçosamente narrativa” (Veyne 54).

Descolonizar o conhecimento sobre a modernidade em si é também descolonizar o conhecimento que herdamos dela, tal como a noção que temos de Idade Média (Dagenais and Greer 431-48). Uma região da história é passível de ser colonizada tal como uma região geográfica e a Idade Média é, como se sabe, uma forte referência europeia que vem sendo reproduzida acriticamente nos países do Sul Global. Assim, pode-se perguntar: as referências de Idade Média na cultura popular da América Latina são as mesmas existentes na Europa? Este texto objetiva dar algumas respostas a questões dessa natureza. Primeiramente, tecerei argumentos a favor do termo neomedievalismo, bem como de seu uso sob a perspectiva da decolonialidade. Em seguida, demonstrarei como uma comédia do escritor brasileiro Ariano Suassuna apresenta uma ideia particular de Idade Média que não apenas difere daquela da Europa, mas também se opõe a ela e cria algo novo, denotando – como intento convencer o leitor – que existe um neomedievalismo anti-colonial no texto de Suassuna (embora a análise tenha demonstrado mais do que isso, como se verá).

Mais do que recriação, re-existência

Muitos são os que defendem o uso do termo medievalismos – preferindo o plural ao singular – devido à óbvia característica de abrangência que automaticamente atribuímos aos conceitos grafados no plural. Considerando que são muitas as recriações do passado medieval passíveis de serem abarcadas pelo campo do medievalismo, é compreensível nos sentirmos compelidos a tentar solucionar nossos impasses conceituais jogando tudo embaixo de um grande “termo guarda-chuva”. Deste modo, nos desobrigaríamos de adotar o termo neomedievalismo e as implicações que o acompanham. Entretanto, penso hoje que, ao invés de tentar abarcar todas as recriações/apropriações do passado medieval em um único campo (consequentemente, um único termo), cabe questionar quais são as especificidades envolvidas naquilo que comumente se chama neomedievalismo. Antes de tudo, tal como nos alertam Altschul e Grzybowski (Grzybowski and Altschul 25–26), devemos considerar que é inerente à noção inicial de medievalismo (desde o tempo de Leslie Workman) a concepção de que existiu uma Idade Média histórica, passível de ser recriada, reutilizada ou imitada após o seu término. Tal concepção é compreensível em países do mundo anglo-saxão nos quais as ligações com o passado medieval justificam-se “historicamente” (em uma espécie de memória coletiva imediata) e onde mais claramente vemos “recriações” interessadas em uma Idade Média histórica. Em relação ao termo neomedieval, costuma-se incluir no seu âmbito as ressignificações e apropriações mais livres, menos comprometidas com a reconstituição histórica. Antes de qualquer tomada de posição, vale questionar se essa distinção – que, convenhamos, soa como algo reducionista – é suficiente diante da inegável pluralidade das ressignificações e recriações inspiradas na Idade Média1.

Essa concepção de neomedievalismo está ainda longe de constituir um posicionamento majoritário. Entre os autores do campo (excetuando os que preferem adotar somente o termo medievalismo), costuma-se distinguir entre aquilo que pode ser classificado como medievalismo e as ressignificações que merecem ser incluídas no neomedievalismo. Segundo Clements e Robinson, “neomedievalism is further independent, further detached, and thus consciously, purposefully, and perhaps even laughingly reshaping itself into an alternate universe of medievalisms, a fantasy of medievalisms, a meta-medievalism” (qtd. in Kaufman 1). Baseando-se nessa definição, Amy Kaufman complementa afirmando que o neomedievalismo, diferentemente do medievalismo, carrega como característica fundamental a a-historicidade. É preciso deter-se um pouco sobre a concepção de historicidade em jogo.2

Mesmo que Kaufman reconheça no neomedievalismo um vínculo com a história – “in other words, neomedievalists may deny history, but that certainly does not stop them from repeating it” –, ela continua a atribuir ao neomedievalismo o termo a-histórico, ainda que atenuando ao caracterizar essa a-historicidade como “aparente” (Kaufman 2) ou identificando uma Idade Média cíclica como característica do neomedievalismo (Kaufman 6). Isto nos leva a refletir os motivos pelos quais um autor usa o termo historicidade. Considera-se o neomedievalismo a-histórico porque ele nega a linha narrativa que divide a história em idades, criando assim um “universo alternativo de medievalismos” ou porque, ao fazê-lo, nega uma Idade Média que findou para dar lugar a algo novo, algo moderno? Tal rótulo só lhe é devido porque menospreza o advento da modernidade? Visto isso, pergunto: só se reconhece historicidade na versão de história universal criada pelo Norte Global? O “meta-medievalismo” do neomedievalismo é somente uma fantasia sem fidelidade histórica ou ele é, ao contrário, a provocação que rompe com uma versão euro-referenciada e suas pretensões universalizantes?

É interessante notar que, ao reconhecer o vínculo do neomedievalismo com a história, Kaufman o faz com o intuito de defender o status de “subconjunto” do neomedievalismo em relação ao campo do medievalismo. Em outras palavras, a autora objetiva convencer seus leitores acerca do vínculo do neomedievalismo com o medievalismo, por isso que, para ela, o neomedievalismo não pode negar sua contingência histórica: “yet while medievalism can exist perfectly independently at any point in time, neomedievalism, despite its seeming ahistoricity, is historically contingent upon both medievalism itself and the postmodern condition” (Kaufman 2). A historicidade do neomedievalismo, entretanto, pode ser justificada por outros caminhos além desse. Sim, o neomedievalismo depende tanto do medievalismo quanto do pós-modernismo. Mas, a meu ver, isso é reconhecer historicidade no campo de estudos do neomedievalismo, no seu nascimento como área do saber, o que não toca na questão das apropriações chamadas de neomedievais (o objeto de estudo daquela área do saber). Elas são ou não a-históricas? Como defendo, as apropriações neomedievais também são históricas porque redefinem o que é historicidade (ou nos fazem retornar ao que, de fato, deveria ser considerado historicidade). O neomedievalismo brinca com as noções de sincronia e diacronia e, ao mesmo tempo, satiriza os cânones definidores do que é “medieval”. É nesse ponto que ele guarda o potencial de nos fazer enxergar a debilidade das certezas construídas a partir do paradigma euro-referenciado. Há, portanto, outras historicidades possíveis, outras perspectivas.

Essas supostas “distorções” do neomedievalismo são justamente o que lhe confere particularidade – também lhe confere o direito de ser considerado como algo novo (neo) no campo do medievalismo. Ainda se baseando na definição de Robinson e Clements, Kaufman afirma: “The distortion is not error, but choice, owing in part to a postmodern vision of malleable and impermanent history in which error is simultaneously impossible and inevitable” (Kaufman 4). Kaufman, contudo, faz questão de marcar uma posição, sublinhando em qual aspecto sua própria definição de neomedievalismo se afasta daquela na qual baseou sua explicação.

In their definition of neomedievalism, Robinson and Clements argue that “‘medieval’ equals simply ‘other.’” Yet it seems likely that to our stockbroker, this refracted version of the Middle Ages is not necessarily other, but self. In her created world, the Middle Ages as she imagines them both belong to her and include her. However she acquired it, this is the only medieval that matters. Neomedievalism is not as interested in creating or recreating the Middle Ages as it is in assimilating and consuming it. The danger of assimilation, of course, is that the essence and the beauty of difference can be lost. (Kaufman 5)

É certo que, enquanto o medievalismo cria ou recria a Idade Média, o neomedievalismo a assimila e consome. Mas a relação do neomedievalismo com o que chamamos de Idade Média vai além disso. O neomedievalismo pode lançar mão de elementos considerados “medievais” para transmitir uma ideia específica, uma ideologia ou uma atitude transgressora – e isso é muito mais complexo do que assimilar ou consumir. O que transgride algo redefine a coisa transgredida. É aqui que entra em cena a perspectiva decolonial e o neomedievalismo latino-americano. Se onde há recriação do passado medieval, há medievalismo e onde há assimilação desse passado, há neomedievalismo, podemos dizer que onde há “re-existência” da Idade Média, há um tipo específico de neomedievalismo (a enorme variedade de ressignificações do neomedievalismo pode gerar diferentes re-existências). A re-existência em questão é aquela que ressignifica o legado de uma Idade Média europeia (a que se pretende “histórica”, cujos traços presentes na América são costumeiramente justificados pela colonização) e o redefine, tornando-o seu oposto: uma marca identitária dos colonizados. No campo das re-existências, geralmente o que se busca é a construção de uma referência familiar, ancestral, na qual é possível reconhecer-se. Kaufman acerta ao afirmar que “… is not necessarily other, but self”, afinal, a visão de que a relação com o passado é uma relação com o “diferente”, “o outro”, parecer não ser suficiente nas discussões sobre o neomedievalismo. Porém, se considerarmos somente o ponto de vista dos colonizados, não há como enxergar - como Kaufman escreve - qualquer tipo de “perigo”, pois perder “a essência e a beleza da diferença” pouco importa. A beleza reside na tradição ressignificada para re-existir como identidade.

Porque o neomedievalismo não é a-histórico

Não é mérito meu esse jogo de palavras (resistência/re-existência). Tomo-o emprestado de Walter Mignolo. Basicamente, o que Mignolo defende consiste em uma prática que vá além da negação do pensamento colonial do Ocidente. Afinal, mesmo na tradição do pensamento ocidental encontramos críticas ao eurocentrismo.

While not accepting could be termed resistance, our interest and proposition here (…) are, more crucially, with re-existence, understood as “the redefining and re-signifying of life in conditions of dignity”. It is the resurgence and insurgence of re-existence today that open and engage venues and paths of decolonial conviviality, venues and paths that take us beyond, while at the same time undoing, the singularity and linearity of the West. (Mignolo & Walsh 3)

Embora o termo re-existência seja útil para os argumentos aqui expostos, cabe uma explicação mais detalhada sobre outro termo do arsenal conceitual de Mignolo. Em coautoria com Catherine Walsh, o autor, ao explicar qual é sua concepção de decolonialidade, apresenta ao seu leitor a noção de relationality.

Relationality doesn’t mean that there is one way to do and conceive decoloniality, and that it happens to be the way we – the authors of this text – do and conceive it. For us to think that we are in possession of a decolonial universal truth would not be decolonial at all but modern/colonial, and for you, the reader, to assume that this is the way we think would create misunderstandings from the very beginning. Relationality also doesn’t mean simply to include other practices and concepts into our own. Its meaning references what some Andean Indigenous thinkers, including Nina Pacari, Fernando Huanacuni Mamani, and Félix Patzi Paco, refer to as vincularidad. Vincularidad is the awareness of the integral relation and interdependence amongst all living organisms (in which humans are only a part) with territory or land and the cosmos. It is a relation and interdependence in search of balance and harmony of life in the planet. (Mignolo & Walsh 1)

Ou seja, relationality (ou vincularidad) guarda semelhança com o conceito de perspectivismo, base do pensamento ameríndio e que foi desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro (Castro). Tal conceito é extremamente útil para inspirar posturas decoloniais, especificamente as latino-americanas. Ao aprendermos um pouco sobre o perspectivismo ameríndio, somos convidados a rever as certezas do conhecimento acadêmico que nos foi transmitido, a exercer uma episteme relacional, que depende de grau e situação do objeto estudado, que ignora a dicotomia sujeito/objeto, em outras palavras, que rompe com a episteme cartesiana da Europa ocidental. Praticar um novo olhar, uma nova epistemologia, sobretudo se for inspirada na visão de mundo dos povos colonizados, é re-existir.

As práticas típicas do “colonialismo do saber” alcançaram tamanho êxito que as narrativas e representações que dela se originaram tornaram-se intimamente entranhadas entre os intelectuais colonizados, a tal ponto que se faz urgente uma compreensão dos percursos pelos quais o saber eurocêntrico tornou-se o paradigma por excelência nas instituições do Sul global. Especificamente no que diz respeito à história – e esta ocupa um lugar emblemático nos paradigmas eruditos imputados à intelectualidade das ex-colônias – faz-se mister reconhecer o quão colonialista a noção de história mundial é. Como muito bem explicado por Ranajit Guha, o que o paradigma euro-referenciado de narrativa histórica disfarça é a diferença existente entre historicidade e filosofia da história. Guja demonstra que, a partir da filosofia da história de Hegel, perde-se toda a concretude do que foi vivido pelas sociedades do passado substituindo-a pela ideia de “razão na história”; criando, portanto, uma imediata identificação que associa o “histórico” ao que se encontra dentro da percurso do chamado “progresso”. Baseando-se no postulado de Marx de que as entidades são esvaziadas de sua existência real e transformadas em um conceito filosófico - “the true existence of religion, the state, nature, art, is the philosophy of religion, of nature, of the state and of art” (qtd. in Guha 3) - Guja conclui que, por uma operação similar, historicidade se transforma em filosofia da história e sua definição por excelência passa a ser a versão de história mundial criada pelo saber europeu. “Historicality as the true historical existence of man in the world is converted by the act of superseding into philosophy of history and the concreteness of the human past made to yield to the concept of World-history” (Guha 3). Isto pode ajudar a entender a insistência em identificar o neomedievalismo como a-histórico.

A abordagem anti-colonial de Guha baseia-se no que ele chama de “limite da história mundial”. Ao contrário do que se possa pensar, o conceito de limite não diz respeito ao que está além das fronteiras da história euro-referenciada. Segundo Guha, “we shall try and think World-history in terms of what is unthinkable within its boundaries” (Guha 7–8). Parte-se, assim, de certos aspectos fundamentais para refletir acerca dos limites da história mundial no interior daquilo que ela pretensamente abarca. Um desses aspectos é a noção de “povos sem história”. Ao criar a noção de que povos sem escrita são povos sem história, o saber europeu empurrou os povos originários para além das margens da civilização, legitimando a conquista geográfica e o genocídio não somente de corpos, mas também das epistemes desses povos. Além da escrita, também o Estado foi associado aos requisitos de historicidade. “The Renaissance formula, ‘No writing, no history,’ so popular with the conquistadors, was updated by 1830—the year of the Second Draft—to read, ‘No state, no history.’ The revision followed inexorably from the logic of historical developments in the West” (Guha 10). E se avançarmos no tempo e olharmos, não mais para os saberes violentamente calados dos povos originários, mas para as criações culturais de grupos subalternos no contexto pós-colonial? Para tal olhar, limitemo-nos ao que aqui nos interessa - o neomedievalismo - e vejamos como esse conceito de “limite” tal como entendido por Guha, pode lançar alguma luz em nosso objeto de interesse.

Como não recria conscientemente um tempo histórico que terminou, mas insiste em viver nele ignorando a cronologia e os marcos (portanto, o “progresso”), o neomedievalismo é, de certa forma, um incômodo para a historiografia tradicional de base eurocêntrica. Não por acaso, muitos autores costumam amplificar alguns de seus detalhes em detrimento de outras características mais relevantes. Exemplo: ao invés de se atentar para o estudo das intencionalidades, interesses e ideologias subjacentes às representações neomedievais, os detratores riem dos elementos fantasiosos ou vêem somente os abusos das simplificações.

Historicidade não deve ser definida pela posição que determinado objeto ocupa na linha narrativa da “história mundial”, mas pela existência concreta desse objeto em determinado tempo e lugar. O neomedievalismo não é a-histórico, pois ele também está assentado em determinada concretude, em algo vivido que pode não apenas ser explicado historicamente, mas também reivindicar um tipo específico de historicidade. Ele desconstrói, provoca e desafia essa narrativa construída pela historiografia ocidental que foi elevada ao patamar de História propriamente dita, o padrão, a referência que se auto-determinou como “mundial”. E a sentença para o crime de subverter a linha do tempo que separa a história mundial em idades não poderia ser outra: não é fidedigno, mas fantasioso, não cria nem recria, mas assimila, está, enfim, fora da História. Um fazer histórico que se proclama decolonial ou anti-colonial não deveria compactuar com tal sentença.

O neomedievalismo consiste em algo “impensável” dentro dos próprios limites da história mundial. Sobretudo no caso dos neomedievalismos ibero-americanos, ignora-se sua originalidade e sua concretude, reduzindo-os a meras imitações a-históricas ou - como se repete quase religiosamente nas pesquisas brasileiras - limitando-os a heranças de um passado europeu. Assim, são trazidos aos limites do reconhecível, do pensável, da narrativa tradicionalmente aceita, incapaz de conceber um medieval não-europeu. Porém, se existe um neomedievalismo nas sociedades colonizadas e se ele reflete uma historicidade independente da que foi imposta pela narrativa da colonialidade, é porque consiste em algo que confunde os limites do pensável na história mundial; portanto, é passível de ser encarado como um tipo de re-existência.

Neomedievalismo como constante

Em ciências humanas, sobretudo em história, o termo explicar é um tanto controverso. Considerando o sentido científico do termo, seria a história capaz de explicar? O autor com o qual iniciei meu texto apresentou uma proposta peculiar e muito promissora no referente à característica da explicação na pesquisa histórica. “Explicar de maneira científica os acontecimentos e individualizá-los é a mesma coisa” (Veyne 49). A intenção de Veyne, ao sistematizar sua concepção acerca do conhecimento histórico, era convencer de que, em história, podemos dizer que, ao individualizar um conceito em um acontecimento, o historiador está oferecendo a explicação de determinado objeto. “Os fatos históricos não se organizam por períodos e povos, mas por noções; não têm de ser recolocados em seu tempo, mas sob seu conceito” (Veyne 54). Eis aqui uma boa contribuição na qual podemos nos inspirar para propor uma abordagem dos neomedievalismos. Diz-nos Veyne:

Assim, a conceituação de uma constante permite explicar os acontecimentos; jogando-se com as variáveis pode-se recriar, a partir da constante, a diversidade das modificações históricas; explica-se, desse modo, o não-pensado e lança-se luz no que era apenas vagamente concebido ou mal era pressentido. Finalmente, e sobretudo, por mais paradoxal que pareça a afirmação, só a constante individualiza, mesmo levando-se em conta seu caráter abstrato e geral (Veyne 17)

O que resta ao historiador, segundo o raciocínio de Veyne, é tão somente inventariar cada individualização de determinadas constantes. A explicação, portanto, não reside no descobrimento de nenhuma “lei geral” dos processos históricos, mas na individualização em casos concretos de conceitos gerais e abstratos (constantes).

Abandonemos, de uma vez por todas, os períodos, as civilizações, as histórias nacionais, ou antes, só lhes concedamos o que for requerido pelas exigências da documentação, das línguas e da bibliografia. Os fatos históricos podem ser individualizados sem serem remetidos ao lugar que lhes corresponde num complexo espaço-temporal; o direito romano não se encaixa num compartimento chamado Roma, mas adquire lugar entre os outros direitos (Veyne 52–53).

Já se tornou lugar-comum afirmar que qualquer período abrangente da história (uma Era, uma Idade, etc.) é uma grande abstração. Especificamente sobre a Idade Média, há tempos os medievalistas sabem que ela, de fato, não existe (Amalvi 599). Quando Amalvi o disse, referia-se ao seguinte fato: a noção de Idade Média é uma construção a posteriori com pretensões de caracterizar dez séculos de história, uma construção abstrata e sempre reelaborada ao sabor das ideologias (mesmo das ideologias não assumidas da pesquisa acadêmica). É importante ter em mente que grandes sequências narrativas são abstrações que não podem dar conta da complexidade, dos pormenores e das diferentes perspectivas existentes na vida social. E a noção que se tem sobre Idade Média está diretamente relacionada à história e identidade europeia. Ora, se é verdade que os neomedievalismos são decorrentes dessa noção europeia de Idade Média, também é verdade que eles são manifestações muito diversas e passíveis de ocorrerem sem uma linha de continuidade com a história da Europa entre os séculos V e XV. Portanto, podemos afirmar que eles são manifestações concretas inspiradas numa abstração. Mais ainda: no caso dos neomedievalismos em países do Sul Global, a ressignificação, apesar de pretensamente “medieval”, provavelmente se explica muito mais pelo contexto imediato (não só em um tempo que não é medieval, mas em lugares sem Idade Média) do que pelos parâmetros da Idade Média europeia. Quero com isso dizer que a Idade Média – como abstração ou noção subentendida – é uma fonte inesgotável de imagens, símbolos e estereótipos que alimenta os diferentes neomedievalismos. Contudo, estes, em suas diferentes manifestações, são passíveis de serem vistos, tocados, assistidos, lidos, em resumo: constituem algo concreto, em oposição à Idade Média, inventada pelos humanistas do século XVI e até hoje reelaborada. Em resumo, o neomedievalismo é alimentado pela abstração, mas produz situações concretas passíveis de serem individualizadas. Como constante, o neomedievalismo precisa ser analisado caso a caso, estudado em diferentes contextos específicos. O pesquisador desse campo – esteja ele estudando um castelo do século XX nos Estados Unidos, o recriacionismo histórico em feiras medievais europeias ou um escritor latino-americano – irá analisar as variáveis, as características particulares, o contexto imediato, a cadeia de causalidades para explicar aquele tipo de neomedievalismo. À luz da teoria de Veyne, ele individualizará uma constante.

Contra os inimigos do Brasil: os gringos de fora e os entreguistas de dentro”

Determinados neomedievalismos vêm ocorrendo no Brasil de diferentes maneiras. Particularmente no que chamamos cultura nordestina, é possível verificar muitos desses casos concretos. Elegi aqui um texto específico de Ariano Suassuna. Vejamos como é possível analisar as maneiras pelas quais o texto individualiza uma constante, ou seja, como ele constrói, a partir de um repositório de representações em comum, um tipo específico de neomedievalismo. A peça em análise possui como título As Cochambranças de Quaderna ou Primeiras Proezas do Rei do Sertão no Cartório Astrológico do Reino do Cariri, foi escrita em 1987 e é composta por três atos. Teve sua primeira montagem em 1988 no Recife, no Teatro Valdemar de Oliveira. Vê-se, portanto, que se trata de um texto muito posterior às peças mais conhecidas de Suassuna. Ter sido a última peça escrita pelo autor não resume por completo seu valor, trata-se também de um texto que permaneceu inédito por muito tempo, tendo sido publicado somente em 2018, numa coletânea da Editora Nova Fronteira; portanto, estamos tratando de um texto que somente agora torna-se objeto de um estudo acadêmico. Porém, apesar da distância no tempo, As Cochambranças de Quaderna não se diferencia demasiadamente das outras comédias, tal como estas, é repleta de influências do teatro de tradição mediterrânica – o que não pode ser confundido, como se costuma fazer, com influência “medieval”, pois, por tradição mediterrânica, entende-se a comédia latina, a novela picaresca espanhola, o teatro de Gil Vicente, entre outras referências identificáveis no conjunto da obra de Suassuna. Carlos Newton Júnior resume as particularidades da comédia em questão:

A peça representa uma espécie de exceção do ponto de vista dos procedimentos criativos do autor. Isso porque, para escrever os dois primeiros atos, Suassuna parte de dois textos originalmente escritos em prosa, dois “casos” protagonizados por Pedro Dinis Quaderna, o mesmo narrador do Romance d’A Pedra do Reino, e que em algum momento iriam compor a trilogia Quaderna, o Decifrador (…) A esses dois atos Suassuna acrescenta um terceiro, que nada mais é do que uma variante de A Caserna e a Catarina, de 1961, peça inteiramente escrita em versos de sete sílabas (…). Para tanto, Suassuna prosifica o texto de A Caserna e a Catarina e substitui o personagem Severino Bisaquinho por Quaderna (Newton Júnior 14)

No referente à valorização da subalternidade, uma das primeiras características que nos chama atenção no texto de Suassuna é a identidade em torno dos grupos que ele identifica como os oprimidos do mundo. Quaderna, o personagem principal, abre o primeiro ato com a seguinte saudação: “Nobres Senhores e belas Damas que me ouvem! Dirijo-me aos Africanos, aos Índios, Ibéricos, Mestiços, Árabes, Asiáticos e Latino-americanos, isto é, a todos os Brasileiros do mundo!” (Suassuna 674). Nota-se que o autor une diferentes povos outrora colonizados, povos que, em algum momento da história, foram considerados a parte não civilizada do mundo. A exceção aqui consiste nos “ibéricos”, afinal, estes são europeus; porém, isso é compreensível, pois, aos olhos de Suassuna, os ibéricos geralmente são ofuscados em detrimento dos povos anglo-saxões – ou, como ele costumava escrever, os “nórdicos”, termo que, apesar da generalização, não deixa de ser interessante, afinal, tal termo é empregado para marcar a oposição com os povos do Sul. Isso pode ser verificado em outros trechos do autor, como, por exemplo, no texto que, em 1972, introduz a segunda versão da peça A Farsa da Boa Preguiça. Nele, Suassuna explica que, apesar de proferir críticas aos “povos brancosos”, os “poderosos do mundo”, ele se sente muito bem com os europeus mediterrâneos:

Agora, sempre me senti muito bem, ao contrário, em contacto com os europeus mediterrâneos, principalmente os gregos, os italianos e os ibéricos, assim como com os africanos – inclusive os árabes – e com os asiáticos como os judeus e os hindus. É por isso que, na minha Poesia, escolhi como símbolo do Povo brasileiro a “Onça Castanha” e, às vezes, a “Onça Malhada”. E se não faço referência expressa aos outros latino-americanos, é porque, inconscientemente e naturalmente, no meu espírito eles formam com os brasileiros uma coisa só (Suassuna 457)

Nota-se que a fluidez da noção de identidade chega a fazer com que os subalternos do mundo sejam não somente equiparados aos brasileiros, mas sejam inclusive confundidos todos numa mesma identidade, como se outros injustiçados espalhados pelo mundo compartilhassem da mesma sina. E continua: “Na luta entre Ases e Reis de um lado; de Peninchas, Peões, Curingas e Palhaços do outro, estou do lado dos Peões – dos oprimidos e explorados do mundo” (Suassuna 674). Quaderna, apesar da pretensão de realeza, é um defensor dos oprimidos. E isso é uma das características mais interessantes e mais difíceis de padronização no personagem. Apesar do cômico, das picardias e malandragem, não é um pícaro padrão, afinal, Quaderna é um rei sertanejo, persegue e enaltece a fidalguia. Contudo, trata-se de um rei típico do povo oprimido do sertão.

Mas esse emprego de Paladino do Povo é incômodo que só a peste! Vocês estão diante de um Imperador e Rei, Dom Pedro Dinis Quaderna, o Decifrador-armorial, Gênio da Raça, Monarca da Cultura Brasileira e candidato a Gênio Máximo da Humanidade. Mas, com todas essas grandezas, sou um Rei meio lascado. E liso! Se eu não tomar cuidado, a Burguesia e os poderosos do mundo me lascam mais ainda! (Suassuna 674).

Logo no início do primeiro ato, quando o autor descreve como deve ser o cenário, dentre os títulos de D. Pedro Dinis Quaderna escritos no letreiro desenhado no pano de fundo, encontramos: “Monarca da Cultura Índia, Negro-Castanha e Árabe-Ibérica do Brasil”. É quase um resumo de como Suassuna vê a cultura nordestina. Ele cria um personagem que é um amálgama de pícaro, escritor, malandro e pobre, mas com sonhos de grandeza, que alimenta, mais do que a pretensão a títulos de nobreza, a pretensão de ser rei.3 Mais interessante ainda é que se trata de um rei “verdadeiro”, que em nada se relaciona com a linhagem dos Orleans e Bragança. Um rei do sertão, agregador dos traços do povo oprimido, mas também dos traços ibéricos (não puramente ibéricos, mas “árabe-ibéricos”) presentes no povo nordestino (como Suassuna costumava argumentar). Além disso, é um continuador da linhagem de um reino sonhado por um movimento sebastianista do sertão pernambucano no século XIX. Isto não é apresentado de forma explícita em nenhum dos três atos, mas como Quaderna é o personagem central dos romances de Suassuna, sabemos disso por outras vias. Passamos a conhecê-lo desde que foi publicado o Romance dA Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta, em 1971. Nessa obra, Suassuna explica a pretensa origem que o narrador Quaderna atribui a si próprio.

Para que ninguém julgue que sou um impostor vulgar, devo finalmente esclarecer que, infeliz e desgraçado como estou agora, preso aqui nesta velha Cadeia da nossa Vila, sou, nada mais, nada menos, do que descendente, em linha masculina e direta, de Dom João Ferreira-Quaderna, mais conhecido como El-Rei Dom João II, o Execrável, homem sertanejo que, há um século, foi Rei da Pedra Bonita, no Sertão do Pajeú, na fronteira da Paraíba com Pernambuco. Isto significa que sou descendente, não daqueles reis e imperadores estrangeiros e falsificados da Casa de Bragança, mencionados com descabida insistência na História Geral do Brasil, de Varnhagen; mas sim dos legítimos e verdadeiros Reis brasileiros, os Reis castanhos e cabras da Pedra do Reino do Sertão, que cingiram, de uma vez para sempre, a sagrada Coroa do Brasil, de 1835 a 1838, transmitindo-a assim a seus descendentes, por herança de sangue e decreto divino (Suassuna)

A maneira pela qual o autor põe na boca do personagem/narrador um claro rompimento com a narrativa histórica tradicional não deve ser ignorada. Levando em conta o que já vimos acerca da postura anti-colonial, sobretudo no referente à desconstrução da versão euro-referenciada da história, considerando também que, aqui, Suassuna menciona claramente uma obra historiográfica amplamente conhecida, é plenamente possível associar o trecho citado a uma tentativa de recriar uma linha histórica que seja mais legítima, não estrangeira, nem “falsificada”. A insistência em afirmar que os “Reis do Sertão” formam a legítima linhagem da monarquia brasileira é, para além do apelo a um conjunto de representações que a referência a uma monarquia inventada por um movimento messiânico de excluídos evoca, uma forma de narrar a história através de um outro viés, mais brasileiro, mais subalterno e, por isso, mais importante que a versão oficial. O fato de ser um texto ficcional de comédia não diminui o peso das escolhas de Suassuna: desmerecer Varnhagen, negar a linhagem dos Bragança, criar um legítimo herdeiro sertanejo, etc.

Até aqui, ainda não chegamos a uma nítida referência a algo “medieval”. Vejamos, então, uma tomada de posição considerável no referente à ressignificação do que é medieval:

Bandeiras, sóis, luas, estrelas e crescentes. Nada, no cenário, que lembre riqueza, Idade Média, Europa ou um falso Oriente. É o cartório-e-consultório de um Rei e Astrólogo-sertanejo, ligado aos espetáculos de Circo pobre ou de Auto dos Guerreiros, de modo que os estandartes e bandeiras são como as insígnias do povo em seus espetáculos - pobres e belas ao mesmo tempo (Suassuna 673).

Aqui, Suassuna dá continuidade à descrição daquilo que considera essencial no cenário da peça. É interessante que, apesar das referências medievais na arte armorial, o autor alerta que as imagens não devem lembrar Idade Média, ou seja, apesar da simbologia que remete à noção de “medieval”, o cenário não deve fazer com que o espectador relacione o que vê à Idade Média, em outras palavras, à Europa. Outra recomendação é que se evite uma imagem falsa do Oriente. Ao que parece, as tais “luas, estrelas e crescentes” não deveriam dar margem à uma visão estereotipada do Oriente – uma espécie de preocupação de Suassuna com o que chamamos de orientalismo, um Oriente reinterpretado sob um olhar europeu. Mas isso é algo que podemos, no máximo, deduzir, pois não está muito claro o que seria o “falso Oriente” referenciado por Suassuna (poderíamos inverter a problematização e questionar se o Oriente sempre evocado por Suassuna, mormente nas referências ao termo “árabe”, não seria também “falso”). O que importa é que, ao término do trecho citado, o autor novamente enaltece a cultura popular, não erudita, não europeia, aquela das “insígnias do povo” – segundo Suassuna, espetáculos simples, porém, belos. Seguindo essa mesma linha de exaltação de tudo o que é popular, a peça de Suassuna apresenta uma explícita oposição a tudo o que é típico da burguesia. Os “poderosos do mundo” não são apenas os outros povos, os “nórdicos” ou os “gringos”. Independente de nacionalidade, a burguesia urbana é sempre vista como inimiga.

Entra Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto (…) Ele representa a aristocracia rural da qual se originou Quaderna, mas que vai, aos poucos, sendo traída e abandonada por este em favor do povo. Em todo caso, entre a aristocracia rural e a burguesia urbana – representada, na peça, pela comissão de inquérito –, Quaderna prefere a primeira (Suassuna 677).

Em outro trecho, o personagem principal, explica como muda de posição, do monarca sertanejo ao escrivão e, obviamente, muda também de indumentária:

Nos momentos em que estou desempenhando o papel de Rei, Astrólogo e Consultor-sentimental, uso Coroa, Cetro e Manto, para, como padre, confessor e Profeta, dispensar às mulheres desconsoladas, aflitas, solitárias e necessitadas, alguns dos sacramentos mais carinhosos do meu Catolicismo-sertanejo. O Cetro e a Coroa vêm do Auto dos Guerreiros. O Manto, tem as cores da parte Católica e da parte Negra-e-Vermelha da minha santa Fé: o azul com cruzes brancas de um lado, e o vermelho com crescentes de ouro, do outro. Agora, quando vou desempenhar minhas funções de Escrivão, Coletor e Serventuário da Justiça, aí o casaco que uso no comum se abre e mostra a camisa com colarinho e gravata que a Burguesia, idiota como sempre, considera indispensáveis para o exercício de qualquer autoridade (Suassuna 675)

O ataque à burguesia urbana se coaduna com o conjunto maior de opositores (os “gringos de fora”, ao passo que a burguesia local seria “os entreguistas de dentro”) que podem ser vistos na peça em questão, mas também em outros textos do autor. Vê-se, portanto, uma crítica ao capitalismo a qual Suassuna nunca se furtou em fazer, seja em textos ou mesmo em entrevistas. Na explicação das motivações da peça A Farsa da Boa Preguiça, Suassuna esclarece que, no fundo, não se trata de uma apologia à preguiça inativa, inerte e condenada pelo cristianismo, mas de uma mensagem contra o modo de vida moderno, capitalista, no qual trabalhar e produzir passaram a ser o valor de medida da sociedade.

Ora, na minha arbitrária e talvez torcida opinião de brasileiro que nunca saiu de sua terra, esses Povos nórdicos são a raça com mais vocação para burro de carga que eu conheço. Nós, Povos castanhos do mundo, sabemos, ao contrário, que o único verdadeiro objetivo do Trabalho é a Preguiça que ele proporciona depois, e na qual podemos nos entregar à alegria do único trabalho verdadeiramente digno, o trabalho criador, livre e gratuito (Suassuna 457).

Não há somente uma condenação do trabalho incessante cujo único objetivo é produzir riqueza, há uma associação entre esse tipo de concepção e os “povos nórdicos”, detentores do capital e que, como Suassuna ressalta, “por enquanto, são os poderosos do mundo”. Na peça em análise, encontramos uma apologia dos valores do povo sertanejo ou do povo trabalhador como um todo sem necessariamente atacar os povos estrangeiros de países desenvolvidos. Mas, quando recorremos (como fiz aqui) a outros textos, o que chama atenção, de um ponto de vista mais abrangente, é a insistência de Suassuna em não apenas valorizar a cultura popular, mas enaltecer as potencialidades dos oprimidos, mesmo no cenário econômico mundial – neste aspecto, quase sempre seu argumento é acompanhado de uma crítica ao capital de outros países e a relação dominadora exercida nos países do outrora denominado Terceiro Mundo. Para Suassuna, não basta denunciar a exploração realizada nos tempos dos colonizadores, parece mesmo que sua maior preocupação é com a atual exploração do “capital estrangeiro”.

Não somente mediante uma análise temática é possível chegar a inferências como essas. Também se analisarmos a estrutura narrativa da peça, veremos as mesmas características. Tomemos como exemplo o primeiro ato, O Caso do Coletor Assassinado. Temos aqui, obviamente, Pedro Dinis Quaderna, mas também Evilásio Caldas (funcionário da Mesa de Rendas), Dom Pedro Sebastião (o típico “coronel” poderoso do meio rural, padrinho de Quaderna), Joaquim Brejeiro (o temido jagunço, a serviço de Dom Pedro) e os membros da Comissão de Inquérito (oriundos do ambiente urbano, recém-chegados a Taperoá para averiguar uma irregularidade). Como na maioria das narrativas ocidentais, o texto forma uma grande sequência narrativa passível de ser dividida em três sequências principais (é claro que há outras tantas sequências menores ao longo da peça, mas as três sequências principais são bem evidentes). Aqui, as três sequências formam o seguinte percurso: crise - intervenção na crise - retorno à ordem.

A primeira sequência narrativa expõe o problema, ou seja, a crise ou desequilíbrio a ser resolvido.4 Evilásio entra em cena e conversa com Quaderna. O texto então põe o leitor a par da gravidade da situação: houve um roubo na Mesa de Rendas perpetrado justamente por Evilásio, o responsável pela administração da repartição. Contudo, não é esse o motivo da quebra da ordem. O que gera a crise é a chegada da Comissão de Inquérito e a iminência de um problema político para Dom Pedro Sebastião. Curioso como o texto pode nos enganar e falsear a análise. Abrir a peça com o acontecimento do roubo deflagra uma série de eventos que se seguem, mas é de fato a chegada da Comissão de Inquérito que estabelece a crise, a ruptura na ordem. D. Pedro, o poderoso local, pode ser uma ameaça para Evilásio, visto que este, por conta do roubo, pode gerar incômodo ao poderio de D. Pedro, mas a Comissão é ameaça para todos. Como afirma o protagonista para o amedrontado Evilásio:

Calma, homem, segure as pregas! Eu não acredito que meu Padrinho tenha chamado Joaquim Brejeiro por sua causa não! No meu entender, foi por causa da Comissão: meu Padrinho está achando que o fato do Governo mandar para aqui uma Comissão de Inquérito, é uma tentativa para desmoralizar a autoridade dele! (Suassuna 676-677).

A Comissão representa o mundo urbano, ela é exterior àquele mundo rural, uma interrupção preocupante que carrega ares de superioridade, um agente que adentra em determinada ordem para julgá-la.

A segunda sequência é a intervenção na crise, os eventos que visam à reparação. Aqui, todo o protagonismo é de Quaderna. Como costumeiro entre os heróis do teatro de Suassuna, Quaderna tem um plano, algo para ludibriar os antagonistas. Quando Quaderna chama o padrinho para expor seu plano, mais uma vez, é ressaltado o perigo da investigação da Comissão de Inquérito: “meu Padrinho, não podemos consentir que Seu Evilásio Caldas seja demitido, desmoralizado e preso, de jeito nenhum! Esse pessoal do Governo quer atingir é o senhor, por meio dele!” (Suassuna 681).

Quaderna convence o padrinho a chamar seu Belo, o tabelião. Como a prisão de seu Evilásio consistiria, indiretamente, na vitória do governo e na desmoralização de D. Pedro Sebastião, Quaderna decide enganar a comissão, forjando a morte de seu Evilásio. A ideia de chamar o tabelião foi justamente para que se providenciasse uma certidão de óbito: “A certidão é que vai ser o óbito, Seu Belo! O senhor lavra a certidão com data de quatro ou cinco dias atrás e o inquérito se encerra, pela morte do acusado! É o único jeito desse desgraçado escapar da cadeia sem que a desonra dele desmoralize meu Padrinho!” (Suassuna 688).

Alguns aspectos merecem ser ressaltados: conforme já dito, não foi exatamente o roubo que ocasionou a crise na ordem estabelecida, mas a intervenção externa; para sanar o problema, a solução também não é honrosa, tampouco heróica. Ora, mesmo sabendo que a trapaça é própria do padrão dos personagens picarescos, há que se considerar quem é o inimigo. Contra a comissão, vale qualquer artimanha para se livrar dela e restabelecer a ordem.

A terceira sequência consiste na execução do plano e no desfecho, solucionando o problema e possibilitando o retorno à ordem anterior. Algumas narrativas podem optar pela solução da crise a partir de um novo equilíbrio, ou seja, a solução da ameaça ou crise consiste em algo novo, uma nova ordem. Entretanto, não é o que vemos aqui.

Quando a comissão finalmente chega, Quaderna explica:

Não houve irregularidade nenhuma na Coletoria! E, mesmo que tivesse havido, o inquérito vai ter que se encerrar, porque o administrador da Mesa de Rendas, Seu Evilásio Caldas, homem decente e sensível, sofreu um abalo, um desgosto tão grande ao tomar conhecimento dos boatos que o acusavam tão injustamente, que teve um ataque do coração e morreu há quatro dias! (Suassuna 691-692).

É curioso como o personagem que personifica o poder local, apesar da preocupação e da crise instaurada, não perde a oportunidade de demonstrar sua força perante o poder externo. Ao saber que o próprio governador pretendia ir vê-lo, D. Pedro responde:

Pois diga a ele que venha! Venha e traga a Polícia de merda dele! Porque, se ele vier sozinho, não preciso nem chamar meus cabras: mando uma comadre velha que eu tenho cuidar dele. Ela tem um putruco de faca, assim, e dá vinte facadas nesse governadorzinho, uma em cima da outra e antes da primeira botar sangue! Então, ele que traga a Polícia! Quero ver se me prendem e me tiram daqui! Quantos mais virem, mais morrem, estão ouvindo? (…) O Padroeiro da cidade dele é fêmea, mas o da minha fazenda é macho, mija em pé, de coca não! Estão ouvindo? É esse o recado que tenho pra seu Governador (Suassuna 690-691).

No entanto, o diálogo que se sucede não é uma disputa de forças. O integrante da comissão somente parece curioso diante da singularidade do fato.

Senhor Dom Pedro Sebastião, há tempo que não vejo uma manifestação tão interessante de autenticidade cultural! Isso é alguma coisa que deve até ser estudada por nossos sociólogos, de tal modo é expressiva de nossa Cultura! Mas o problema é que o Governo recebeu denúncias de graves irregularidades que estariam ocorrendo na Coletoria daqui! (Suassuna 691).

Esse trecho revela mais do que parece à primeira vista. Não obstante o pavor que a figura de D. Pedro causa dentro dos limites de Taperoá - esse mundo rural onde Quaderna atua -, a comissão, ameaça externa, poder urbano, representante a um só tempo da burguesia e do governo, não faz mais do que notar a excentricidade das falas do “coronel”. Não se trata somente da comissão que não leva a sério as ameaças de D. Pedro. O trecho resume como a burguesia vê o mundo rural e sertanejo: com empáfia, percebendo ali tão somente o exotismo a ser estudado, manifestação de uma cultura regional.

Despistada a comissão de inquérito, Quaderna orienta o tabelião a lavrar uma nova certidão de nascimento para seu Evilásio que, a partir de agora, será seu Epitácio, irmão mais novo do “falecido” Evilásio. Além disso, ganhará uma nova função, pois demonstrou não ser de confiança para retornar à Mesa de Rendas. Em seu lugar, Quaderna assume como novo coletor. O protagonista engana o inimigo externo, garante a manutenção do poder local e ainda ganha uma compensação. Nota-se que não se tem um retorno idêntico aos detalhes anteriores. Porém, ainda assim, em essência, o desfecho consiste em um retorno à ordem anteriormente estabelecida, esses ajustes somente foram consequência do plano e, obviamente, o protagonista ludibriador termina com algum bônus. A narrativa encerra com Quaderna sendo coroado como monarca. Não um rei tradicional, mas rei satírico; ainda assim, é rei a seu modo.

(…) pegue ali aquela Coroa e me coroe aqui como Monarca da Cultura Brasileira e Imperador do Reino do Sete-Estrelo do Escorpião! Joaquim Brejeiro fica aqui ao meu lado para ser, também coroado, porque, apesar de ainda extraviado a serviço da Aristocracia, é um Príncipe do Povo! (…) Muito bem! Agora, toquem o Hino que escrevi contra os inimigos do Brasil - os gringos de fora e os entreguistas de dentro! Toquem e cantem, porque eu quero sair daqui num Cortejo real! (Suassuna 695).

A burguesia foi enganada e a ordem foi mantida. Isso é revelador de algo que pode não ser percebido facilmente: o conservadorismo presente no texto. Não obstante a postura anti-colonial e anti-burguesa, a narrativa não segue uma lógica de ruptura da ordem, mas sim uma lógica que conserva a ordem. Isso está claro na estrutura da narrativa como um todo. Uma narrativa que soluciona crises com um retorno à ordem é uma narrativa que optou pela lógica conservadora. Mesmo em alguns detalhes é possível perceber esse aspecto fundamental: o coronel mantém seu poder; o jagunço, apesar de servir à aristocracia, é um “príncipe do povo”; a aristocracia é preferível à burguesia; Quaderna é pícaro, é pobre, mas também é aspirante à fidalguia e, mais ainda, exige ser coroado e a peça finaliza com um cortejo de sua coroação. Isso se coaduna com o conservadorismo do próprio autor, um amante da história ibérica, apologista da monarquia, do catolicismo e, ademais, crítico ferrenho de manifestações culturais e artísticas com influência estrangeira.5

Considerações finais

O neomedievalismo específico aqui individualizado ressignifica referências medievais: estandartes e bandeiras não podem parecer europeus, antes, devem exprimir a simplicidade dos desvalidos. Também transgride os símbolos monárquicos: Quaderna é o trapaceiro com pretensão, dentre vários títulos, ao de rei. Para além dessas ressignificações que permeiam um texto cujos personagens não tem nada de medieval (muito ao contrário, vivem no Nordeste brasileiro do século XX), o autor promove uma assumida defesa dos elementos regionais brasileiros, opondo-os aos países do Norte global e, ao fazê-lo, valoriza outros povos subalternos do mundo, aglutinando-os em uma generalização identitária que é, no mínimo, equivocada sob a ótica acadêmica, mas que é perfeitamente possível em termos literários. Um neomedievalismo, portanto, brasileiro, nordestino, subalterno, anti-imperialista e anti-colonial. Também um neomedievalismo no qual podemos vislumbrar uma valorização da tradição rural em oposição à vida urbana e à modernidade. Pode-se, então, dizer dele que também é um neomedievalismo anti-modernidade (o que não surpreende, pois é da essência de muitos neomedievalismos ressignificarem a noção de Idade Média para justificar uma crítica ou uma pretensa recusa dos tempos modernos). Todavia, nada nesse caso concreto de neomedievalismo é revolucionário. É possível transgredir a narrativa histórica euro-referenciada e, ao mesmo tempo, seguir uma lógica conservadora.

A manutenção da ordem estabelecida significa a continuidade dos elementos arcaicos inerentes àquela ordem, bem como de suas relações de poder. Portanto, pode-se concluir que, ao menos no texto aqui analisado, o neomedievalismo de Ariano Suassuna é, malgrado seus aspectos transgressores e anti-coloniais, essencialmente conservador.

Ao individualizar o neomedievalismo a partir de um estudo de caso, como aqui me propus, percebe-se que não há motivo forte o suficiente para denominá-lo de a-histórico. Todos os elementos identificáveis no texto estão ancorados na vivência de um mundo com concretude histórica, o mundo do sertão nordestino brasileiro. Se Suassuna (e a tradição oral do Nordeste) mescla tradição ibérica e elementos pretensamente medievais com as histórias e a tradição do sertanejo, ele o faz a partir do olhar do não-europeu, daquele que imputa a essas tradições uma “re-existência” para que essas permeiem sua própria história, não mais a dos colonizadores. Há concretude histórica na narrativa, pois, apesar de ficcional, é retirada do amálgama de histórias, casos e lendas populares. Concretude também de um neomedievalismo baseado na realidade perceptível, verificável e viva dos povos do Nordeste brasileiro. Historicidade é isso, não a simples aderência a uma narrativa pretensiosa e limitante que elege a Europa como modelo para o mundo.

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1 Atualmente, prefiro o uso exclusivo do termo neomedievalismo, ao invés de distinguir entre este e o medievalismo, concordando com o exposto por Altschul e Grzybowski (Altschul and Grzybowski 24-35).

2 Posteriormente, tentarei demonstrar que a certeza nessa distinção denota como os especialistas do campo tendem a reconhecer aprioristicamente uma historicidade no objeto de estudo do campo do medievalismo e a negá-la ao neomedievalismo tão somente devido à ruptura deste com a narrativa da “Idade Média histórica”; em outras palavras, historicidade, para os especialistas do campo, é a inclusão dentro da linha do tempo da narrativa historiográfica tradicional, dividida em idades com marcos euro-referenciados, apologética do progresso, da civilização e do Estado.

3 O reino da Pedra Bonita foi um movimento messiânico de caráter sebastianista que, tal como outros movimentos semelhantes, teve fim após uma violenta investida das forças do governo. Ocorrido entre 1835 e 1838 na fronteira de Pernambuco com a Paraíba, mais especificamente no local hoje pertencente ao município de São José de Belmonte, o movimento foi inaugurado por João Antônio dos Santos, um indivíduo que passou a pregar que D. Sebastião estava encantado na Pedra Bonita e era necessário libertá-lo. Após a perseguição das autoridades, João Antônio fugiu, todavia, seu cunhado, João Ferreira deu prosseguimento ao movimento ao proclamar-se rei. O ápice que levou ao ataque das forças do Estado deu-se após os vários sacrifícios humanos perpetrados por João Ferreira, sob a crença de que a Pedra Bonita somente se desencantaria com sangue.

4 São bem conhecidas as teorias de Bremond e Todorov a propósito da análise estrutural da narrativa, especificamente sobre como as narrativas são estruturadas em unidades (sequências) que dão coesão e sentido ao que se narra. Aqui, não irei necessariamente seguir um ou outro teórico, mas descortinar o que surge a partir de uma leitura acurada do texto.

5 Embora não seja fácil resumir a ideia de arte de Suassuna (e seria leviano tentar fazê-lo em poucas linhas), é possível verificar que, por detrás da defesa da identidade brasileira, suas observações denotavam uma postura intransigente em relação ao “novo”, bem como uma certa filiação a uma visão de arte oriunda do esteticismo europeu do século XVIII.