Vargas, Lorena da Silva. Medievalismo: a Idade Média nos imaginários moderno e contemporâneo, Curitiba, Appris, 2021, 401p.

O livro “Medievalismo: a Idade Média nos imaginários moderno e contemporâneo”, publicado pela editora Appris e disponível para compra online, é uma coletânea de artigos sobre o uso do passado e memória medievais em tempos posteriores à idade média organizada por Lorena da Silva Vargas. Ela é graduada e mestre em História pela UFG; atualmente, é doutoranda em História da Arte na Universidad de Valladolid. A autora vem se consolidando no estudo da arquitetura medieval e do neomedievalismo.

Baseando-se no filósofo Bronislaw Backzo e em seu conceito de imagens mentais como uma “rede de sentidos” que opera como guia e índice valorativo, Vargas entende que estas operações também são aplicadas ao passado, como, por exemplo, o da idade média. Em face ao seu alto uso na mídia e na cultura de massa contemporâneas, é importante estudar não só as apropriações do medievo histórico, mas de todos e quaisquer usos ou evocações de imagens mentais criadas sobre o medievo, posteriormente à sua própria época. Esse é o objetivo da obra e motivo da eleição do medievalismo como referencial teórico. Portanto, cada capítulo apresenta, de forma qualificada, um diferente aspecto do manuseio contemporâneo desse passado e seu modus operandi na construção de imagens mentais.

Vargas e os colaboradores entendem ser necessário um diálogo com um público extra-acadêmico, popular e, de fato, consumidor dos produtos neomedievais que abordam. Esse objetivo de acessibilidade é alcançado em função da linguagem simples e um hábil uso de imagens, exceto nos momentos mais técnicos dos capítulos sobre arquitetura, que demandam maior concentração e esforço. Simultaneamente, a leitura é proveitosa também para o público acadêmico: medievalistas encontram, nela, eficiente introdução ao campo do neomedievalismo, tanto pela teoria quanto pelo exemplo prático, e mesmo historiadores não medievalistas têm muito a aproveitar, pois os diálogos teóricos da obra reverberam em questões mais amplas sobre consumo de massa, simbologia e mente humana, formação e instrumentalização da memória etc. Além disso, ao estudar o uso das imagens sobre a idade média, o livro também proporciona considerável conhecimento sobre a idade média histórica. Isto posto, a obra divide-se em vinte capítulos agrupados em quatro partes: Arte, Religião, Política e Heróis.

Na primeira parte, “Arte”, há uma onipresença da Arquitetura em sete capítulos: no capítulo um, “The Elder Scrolls V: Skyrim e o medievo nos games”, Beatriz Faria (UNIFESP) discute o medievalismo presente no jogo Skyrim por intermédio dos símbolos dos cavaleiros medieval e dos vikings e da arquitetura, elementos que serviriam à composição de verossimilhança ao elencarem signos do imaginário popular atendendo às noções do romantismo inglês do século XIX. No capítulo dois, “El gótico mágico: la ambientación artística en la saga cinematográfica de Harry Potter”, Jon Castaño Morcillo (Universidad de Valência) estuda o medievalismo em Harry Potter por meio de seu uso da arquitetura gótica e neogótica, com ampla descrição destes elementos e de suas inspirações, bem como seu manuseio pela saga para produzir determinadas emoções e atmosferas. No capítulo três, “O medievalismo de Alexandre Lenoir: do depósito temporário do convento dos Petits-Augustins ao musée des Monuments Français”, Flavia Galli Tatsch (UNIFESP) estuda o medievalismo do processo de curadoria de acervos artísticos medievais por Lenoir na contramão do processo de destruição do passado medieval na Revolução Francesa. No capítulo quatro, “Huellas Del Medievo em los arbores de La época moderna em Granada e su perfil em la ciudad contemporâna. El mudéjar como exemplo de integración”, Maria Lourdes Gutiérrez-Carrillo (Universidad de Granada) aborda o medievalismo no entendimento, na preservação e, em alguns casos, na substituição do estilo arquitetônico islamo-cristão mudéjar, típico da Espanha, através das políticas da Coroa nos séculos XVI e XXI para com este legado.

No capítulo cinco “Idealización, Mitificación y Mixtificación de La Granada nazarí y de la Alhambra. La obra de Fernando Laína”, Rosana Piñero-Quesada (IES ABROAD) e Guadalupe Romero-Sánchez (Universidad de Granada) trabalham o medievalismo orientalista incidente sobre a cidade de Granada e seu complexo citadino régio Alhambra, exemplificado através da novela “El Alcazar Maravilloso” de Fernando Laína, que entendem ser uma peça romântica marcada pela idealização da cultura nazarí e uma completa mistificação de Alhambra. No capítulo seis, “La identidad construida: Traducciones neogóticas en la arquitectura doméstica burguesa en Argentina, Chile y Uruguay”, Elena Montejo Palacios (Universidad de Granada) estuda o medievalismo no neogótico de residências civis burguesas destes países por meio da Teoria da Tradução que, além de revelar a “tradução” técnica da arquitetura, demonstra uma construção de identidade de classe e de intraclasse por essa burguesia. No capítulo sete, encerramento da seção escrito pela organizadora, “Medievalismo no cerrado brasileiro: a Igreja do Rosário da cidade de Goiás”, Lorena da Silva Vargas estuda o uso do neogótico na modernização eurocêntrica no Brasil, em particular no processo de embranquecimento da paisagem urbana. Para isso, parte do caso da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Vila Boa, atual Cidade de Goiás, que fora, originalmente, construída por irmandades negras e posteriormente substituída pelo neogótico.

Na segunda parte, “Religião”, temos cinco capítulos. No capítulo oito, “Imagens de Heloísa: uma filósofa medieval e sua justa entre o amor e a razão”, Ana Luiza Mendes (UFPR) aborda a história de Pedro Abelardo e Heloísa, refletindo sobre a imagem contemporânea do amor e do amor no medievo, bem como as visões de Heloísa como amante apaixonada e filósofa. Sendo assim, investiga a adoção moderna do caso de Abelardo e Heloísa como símbolo, descortinando no processo anacronismos, bem como precisando as configurações e as alterações nas ideias de amor, de casamento e de gênero no medievo e na historiografia. No capítulo nove, “O Espaço Como Produtor de Memória: A Arte de Cláudio Pastro no Interior do Brasil”, Renata Cristina de Sousa Nascimento (UFG, UEG e PUC-Go) apresenta e analisa a ideia de espaço sagrado na obra de Cláudio Pastro, demonstrando o uso de teoria e técnica medievais na sacralização do espaço do templo através da evocação da memória da narrativa bíblica por meio de símbolos imagéticos. No capítulo dez, Caminhos de Santiago: da estruturação nos séculos XI e XII à reestruturação no pós-Segunda Guerra Mundial” Adailson José Rui (UNIFAL - MG) e Jordano Viçose (UNIFAL - MG) versam sobre o Caminho de Santiago de Compostela, primeiramente por meio do seu resgate pelos órgãos internacionais como a UNESCO em um esforço político de integração e celebração da tolerância, posteriormente, e, em maior extensão, descrevendo a construção, literal e narrativa, da rota de peregrinação desde sua origem até seu reavivamento.

Já no capítulo onze, “Do Templarismo ao Neotemplarismo: o problema do consumo e da nostalgia nas leituras da Extrema-Direita brasileira acerca da Ordem do Templo”, Bruno Tadeu Salles (UFOP) e Guilherme Rodrigues Otoni Alcântara (UFOP) estudam o neomedievalismo no uso da memória dos templários pela extrema-direita brasileira, abordando o fenômeno como uma “manifestação nostálgica” e de consumo, que simplifica elementos medievais a um estereótipo vendável. No processo, refletem sobre história pública e a mobilização destes estereótipos na construção de discursos intolerantes. No capítulo doze,As Cavalhadas de Pirenópolis: multivocidade e pensamento labiríntico” Adriana Vidotte (UFG e UNIFAL) e Ricardo Lenard Alves (UFG) abordam a festa da cavalhada em Pirenópolis, abrangendo as origens medievais da festividade até sua reelaboração no Brasil, refletindo sobre o papel da cultura e identidade históricas para a comunidade, culminando em uma análise dos sentidos da festividade em relação aos valores democráticos.

Na terceira parte, “Política”, há quatro capítulos. No capítulo treze, “Passado Restaurado: A Sé de Lisboa nas comemorações dos centenários em Portugal (1940)” Willian Funke (IFA) aborda o uso simbólico e neomedieval da Sé de Lisboa desde sua fundação até o Estado Novo, em 1940, quando Salazar teria realizado uma operação de “controle do tempo” para associar seu governo aos melhores momentos da nação, projetando-se como restaurador literal dos monumentos e simbólico dos eventos que representam. No capítulo catorze,Usos y costumbres. El trasfondo político en la época de los Reyes Católicos en la serie Isabel”, Elena Martín Martínez de Simón (Universidad de Burgos) aborda o retrato das décadas finais do medievo espanhol na série de TV Isabel, com foco na construção de época e dos costumes, em especial o vestuário, as locações, o linguajar, o comportamento, sobretudo, o feminino na figura da própria Rainha Isabel e, por fim, na presença ou não do nacionalismo. No capítulo quinze, “Game of Thrones, um sonho do medievalismo”, Douglas Mota Xavier de Lima (UFOPA) e João Batista da Silva Porto Junior (UFF) analisam a saga transmidiática Game of Thrones, com foco na série de TV. Dividem sua abordagem em dois aspectos: a construção da ambientação pelo uso de castelos e os “perigos” do neomedievalismo da saga, traçando um panorama crítico da imagem do medievo cristalizada pela série. No capítulo dezesseis,Impérios, castelos e guerras, muitas guerras: a ‘Idade Média’ em ação nos videogames (1999-2019)” Felipe Augusto Ribeiro (UFMG) tece uma análise comparativa dos jogos Age of Empires 2 e Total War 2, diferenciando suas mecânicas e seus retratos do medievo, simultaneamente refletindo sobre como analisar estes tipos de jogos e incorporá-los ao ensino de história. No capítulo dezessete, “Representações de poder no jogo Kingdom Come Deliverance”, Renato Viana Boy (UFFS) e Diego Meotti (UFFS) abordam a representação do Sacro Império e do Reino da Boêmia medievais neste jogo simulador, com foco inicial na representação do poder via relação imperador-nobreza e da biografia dos monarcas. Depois, enfocam a representação e uso do ideal de cavalaria na construção da nobreza e, por fim, o retrato dos rituais de passagem masculina para a vida adulta e militar.

Na quarta e última parte, “Heróis”, há apenas três capítulos: no capítulo dezoito, “De defensora da fronteira à colaboradora dos nazistas: Joana d’Arc e os conflitos militares franceses do final do século XIX à Segunda Guerra Mundial” Flávia Amaral (UFVJM) trabalha a memória e a instrumentalização da figura de Joana D’Arc, desde sua vida até os dias atuais, com ênfase em sua apropriação como símbolo de resistência nacional ou colaboração nazista durante e após as guerras Franco-Prussiana e Mundiais. No capítulo dezenove, “Rei Arthur nos anos 1980: um homem quase perfeito” Ramiro Paim Trindade Junior (UFSM) parte da nova história cultural como referencial teórico, em particular dos conceitos de representação e de discurso, e realiza uma análise comparativa do filme de 1980 “Excalibur, a Espada do Poder” em relação à obra “A Morte de Arthur”, publicada no fim do medievo e fonte de inspiração do roteiro, demonstrando usos e atualizações dos ideais medievais na construção do personagem Arthur no tocante à sua origem, governança, destreza militar, justiça e virilidade, de modo a também pintá-lo com os ideais alegadamente conservadores e reacionários da Era Reagan. No último capítulo, o vinte, “Os reencontros de Tristão e Isolda através dos ecos da História”, Roberta Bentes (UFPR) empreende uma minuciosa história da lenda de Tristão e Isolda, desde sua origem celta até os dias contemporâneos, passando por sua cristianização, reelaboração e registro escrito ao fim da idade média, na modernidade de distintas regiões (Inglaterra, França, Alemanha, Escandinávia e Península Ibérica) e nos séculos XX e XXI através do cinema e da música, concluindo que a lenda tem sido usada como veículo para a discussão da ideia de amor.

Tendo tudo isto em vista, é notável a relevância acadêmica e didática do livro, unindo profissionais brasileiros e espanhóis, é abrangente em objetos, contextos e abordagens, exemplificando a interdisciplinaridade intrínseca da área. Ensina tanto sobre os olhares que o tempo atual lança sobre a idade média quanto sobre o próprio medievo histórico por meio de sua transformação pela contemporaneidade, passando longe de se resumir a um ranheta exercício de apontamento de anacronismos (mas sem deixar de denunciá-los, quando oportuno), como, por exemplo, nas abordagens sobre a origem e desenvolvimento do neogótico ao longo de vários capítulos, ou sobre a formação dos Estados espanhol e português no fim do medievo. Apesar de vários capítulos devotarem espaço para discussão teórica, estas seções nunca se tornam repetitivas, sendo sempre complementares. Sendo assim, reafirma-se que a obra é acessível ao público leigo, mas igualmente proveitosa ao especializado, de modo que é indicada a qualquer um com interesse na área ou na construção e mobilização da memória.

Helber Lessa
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
helberlessa@gmail.com