A Idade Média e os Livros Didáticos: Um Neomedievalismo

The Middle Ages and the Textbooks: A Neomedievalism

Rodrigo SIMÕES
Mestrando em História pela Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-5997-1600
rodshc@gmail.com

Resumo: Conceito de difícil definição, é uma característica do neomedievalismo devido à sua contínua mudança e desenvolvimento acerca da construção em torno do conceito de Idade Média. Entendendo o material didático a respeito da Idade Média como tal, o livro didático é muitas vezes o primeiro e/ou único contato do brasileiro com livros, caracterizando-se como um instrumento crucial nas salas de aula, fato que torna urgente a constante melhoria deste material e, consequentemente, dos debates e críticas a respeito dessas obras. Dessa forma, a figura da Idade Média escolar analisada por intermédio da teoria do neomedievalismo é o objeto de análise deste artigo.

Palavras-chave: Neomedievalismo; Idade Média Escolar; livros didáticos.

Abstract: A concept that is difficult to define, it is a characteristic of neomedievalism due to continuous change and development about the construction around the concept of the Middle Ages. Understanding the didactic material regarding the Middle Ages as such, the textbook is often Brazilian's first and/or only contact with books, characterizing itself as a crucial instrument in classrooms. A fact that makes it urgent to constantly improve this material and, consequently, the debates and criticisms regarding these Works. Thus, the figure of the of the Middle Ages in the textbooks is the object of analysis through the theory of neomedievalism in this article.

Keywords: Neomedievalism; Textbook Middle Ages; textbooks.

Recibido: 12/03/2024

Aceptado: 02/04/2024

Cómo citar: Simões, R. (2024). A Idade Média e os Livros Didáticos: Um Neomedievalismo. Neomedieval, 1, 119-139. https://doi.org/10.33732/nmv.1.7

Copyright: El/La Autor/a.

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Introdução

Nos últimos anos, uma discussão sobre os usos do passado e, consequentemente, da Idade Média, tem se popularizado nas universidades da América Latina. Os motivos dessa popularização são diversos e esbarram também no crescente interesse por parte dos novos graduandos na Idade Média. Entretanto, o ponto central, talvez, seja que a Idade Média também esteja no nosso cotidiano para além das importações das superproduções, estando presente também para defender alguns posicionamentos políticos e também até mesmo para contar a nossa história em uma perspectiva eurocêntrica/ocidental, caso do objeto de estudos em questão: os livros didáticos.

A Idade Média é constantemente representada, citada, utilizada e referenciada em diversos âmbitos socioculturais. Sejam em filmes, séries, programas de televisão, novelas, brinquedos, memes, games ou mesmo discursos políticos, este período histórico é meramente referenciado ou mesmo pode ser a base que solidifica esses diferentes discursos. Assim, é evidente a utilização da Idade Média para produzir conteúdos diversos e o retorno a ela se tornou obsessivo mesmo fora da Europa. Umberto Eco, renomado linguista italiano, no capítulo “Dreaming of the Middle Ages” de seu livro “Travels in Hyper Reality”, explica que esse interesse pela Idade Média ultrapassou os europeus e chegou aos Estados Unidos, o grande império do mundo hoje e que reforça o seu discurso também usando do passado, porque tanto a Europa como os Estados Unidos representam o legado Ocidental, no qual todas as suas questões começam na Idade Média (Eco 59).

Assim, Eco inaugurou uma discussão ao argumentar que a Idade Média é constantemente reconstruída, definindo dez tipos de “pequenas idades médias” diferentes, entendidas como um conteúdo “neomedieval”, palavra essa que se referia a uma paixão cultural popular em relação à Idade Média. Ao mesmo tempo, Workman definiu “medievalismo” como algo muito parecido à definição de neomedievalismo de Umberto Eco. Para Workman, o medievalismo não se dedica a descobrir ou recuperar a Idade Média, mas sim em constantemente recriá-la, entendendo que a própria historiografia medieval, o estudo da recriação sucessiva da Idade Média por diferentes gerações, é a Idade Média, ou seja, o medievalismo, para além de um método, seria também o reconhecimento de que a própria “Idade Média”, em si, nasce de uma construção artificial. A partir disso, existe uma longa discussão sobre o que são medievalismo e neomedievalismo e quais são suas diferenças.

Portanto, entendemos os conteúdos de Idade Média presentes nos livros didáticos como uma forma de neomedievalismo ao concordarmos com KellyAnn Fitzpatrick, na obra “Neomedievalism, popular culture and the academy”, que a definição prática do neomedievalismo é a de ser um produto de um processo contínuo de reavaliação do que pode ser feito com a Idade Média num presente em constante movimento. Importante dizer que Fitzpatrick não critica o que está fora da academia, para ela todo esse processo resulta naquilo que se poderia, superficialmente, considerar como objetos de crítica, como em artes, mercadorias, jogos; outras vezes, na crítica propriamente dita, como em monografias, artigos, palestras, seminários universitários. “Yet such classifications are deceptive, as so easily a monograph becomes a commodity (en route to tenure), a game critiques gender roles past and present,” (Fitzpatrick 28).

Dessa forma, o que está fora da academia também é importante, sobretudo um material que deveria estar em consonância com ela, mas não está, no caso dos livros didáticos. É característico do neomedievalismo a sua contínua mudança e desenvolvimento, não havendo uma definição correta. O conteúdo de história medieval presente nos livros didáticos, portanto, se enquadra bem nessa definição. Além disso, é importante destacar que estamos abordando um material sobre Idade Média que tem pretensões de exalar uma exatidão histórica, mas que foi produzido em um local onde a Idade Média nunca existiu e, na medida em que conexões e explicações para seu estudo são atribuídas por esses livros, percebemos justamente essa ideia de um processo que reavalia o que pode ser feito com a Idade Média em um presente em movimento.

1. A Idade Média No Cotidiano: Os Diferentes Usos Do Passado

Por mais que o objeto tratado dessa discussão sejam os livros didáticos, acreditamos que seja necessário mostrar que essas percepções sobre a Idade Média não surgem na escola, mas sim são apenas reforçadas por ela, visto que as representações da Idade Média estão presentes no nosso cotidiano o tempo inteiro. Dessa forma, para começar a discussão, destacarei dois populares exemplos: o vídeo viral do cavaleiro da Lux Brasil e o primeiro capítulo, de nome “A cruz e a espada, do documentário da Brasil Paralelo Entretenimento e Educação chamado “Brasil – A última cruzada, distribuído de forma gratuita mesmo se tratando de uma plataforma paga, o que evidencia uma certa prioridade na divulgação do conteúdo em questão. No primeiro caso, presente no canal da Lux Brasil no YouTube, temos uma excelente representação desse tipo de neomedievalismo que vem sendo bastante utilizado pela extrema-direita conservadora. Nele, é apresentado um estereótipo de cavaleiro medieval bradando para que a população brasileira vá às ruas no dia 15 de março de 2020, data de uma popular manifestação a favor do governo do presidente da república Jair Messias Bolsonaro. Dessa forma, uma Idade Média é construída no vídeo em um padrão bastante comum, a de um período cuja moralidade cristã é exaltada em uma época sagrada e perfeita, com a Igreja controlando todos os âmbitos sociais, caindo em um estereótipo de cristocentrismo — muito mais uma realidade da Europa Ocidental, sobretudo França, Alemanha e Inglaterra, e só —, ou seja, longe de representar tudo que abrange à Idade Média.

No segundo exemplo, seguindo os passos dessa direita conservadora-cristã, a empresa Brasil Paralelo, conhecida por difundir uma ideologia liberal, lançou uma série de seis capítulos com o objetivo de mostrar a verdadeira identidade brasileira. O grande problema é que, já no primeiro capítulo, o documentário busca incessantemente ligar o Brasil ao movimento cruzadista, com uma clara intenção de aproximar a identidade brasileira à identidade europeia de forma mais vil possível: negando a História. Dessa forma, evidentemente, passaram longe de promover “a verdadeira identidade brasileira” que, mesmo para um trabalho sério, já seria algo extremamente subjetivo, mas sim meramente tentaram utilizar-se do passado — da Idade Média —, para se sentirem mais europeus, lógica seguida por muitos grupos supremacistas não-Ocidentais para se aproximarem do Ocidente e excluir da história ou mesmo despejar ódio em minorias específicas, sejam elas religiosas, étnicas, de gênero etc.

A partir disso, surge uma questão: seria possível colonizar uma região da História (o passado) da mesma forma que se coloniza uma região geográfica (território)? Certamente, para o estabelecimento de um Império, a colonização do passado é crucial. Os vastos impérios europeus, há muitos séculos, se constituem da assimilação das pessoas e do espaço em que elas habitam, construindo, inclusive, um outro passado para esses grupos. Passado este que, apesar de pertencer no sentido cronológico, não tem garantia de civilização plena na nação da Modernidade. Portanto, a Idade Média não é meramente um período histórico, mas sim um tempo colonizado e explorado pela Modernidade desde os primórdios da expansão geográfica, ainda nos discursos de Petrarca, escritor italiano renomado conhecido como “pai do humanismo” no século XIV que chamou o tempo em que ele vivia de media tempestas (tempo medíocre, tempo do meio). Inclusive, é nesse momento que metáforas como “escuridão”, “primitivismo”, “barbaridade” etc. surgem e permanecerão sendo usadas pelos europeus posteriores a Petrarca para descrever o tempo que se tornou um consenso chamar de Idade das Trevas; inclusive, esses termos também foram utilizados para descrever os habitantes do novo mundo (Dagenais e Greer 1-4). Assim, o que aconteceu foi uma quebra de coetaneidade, como se esses povos colonizados pertencessem a uma temporalidade diferente da Europa mesmo coexistindo simultaneamente a ela cronologicamente. Como se, na época das grandes navegações, a Europa fosse Moderna, e somente ela, enquanto o resto do mundo permanecesse “medieval”.

Além disso, é importante perceber que nem mesmo a própria Europa escapou desse plano de dominação, visto que, seguindo essa lógica, a História do Ocidente deve ir diretamente ao brilho da Antiguidade e, depois, aos seus sucessores naturais, como Petrarca e outros, e suas noções de modernidade. Como se os mil anos que se passam entre o século V e o século XV fossem um buraco na história, podendo ser utilizado ao bel prazer para defender qualquer tipo de discurso, o que é extremamente perigoso. Ou seja, a própria “Idade Média” foi colonizada justamente porque tem servido aos interesses desses impérios nos últimos séculos. Esses tipos de práticas permanecem até os dias de hoje, sobretudo no ponto de vista dos discursos políticos, como nos exemplos supracitados, nos quais, muitas vezes, a Idade Média é enxergada pela direita como uma época de moralidade cristã ideal e exemplar e, pela esquerda, como um período bárbaro, atrasado, corrompido e teocrático.

Pensar e debater esses assuntos é importante, inclusive, para se pensar a Idade Média na Educação Básica, sobretudo, porque o cotidiano do estudante também é trazido para dentro das salas de aula, conforme exposto por Paulo Freire em “Pedagogia da Autonomia”. Isso se torna bastante preocupante quando se reflete que todos esses pontos abordados apontam para uma Idade Média ocidental, europeia, feudal, cristocêntrica, masculina, branca, lúdica e heteronormativa. Entretanto, o que vemos na escola não é uma desconstrução dessa Idade Média, mas sim uma reprodução de um discurso que chamei de “Idade Média escolar”, que prioriza abordar estereótipos comuns a respeito da Idade Média, como feudalismo, catolicismo, crise do modelo feudal e ascensão de uma burguesia capitalista, desprezando trocas e contatos culturais e interpessoais e contando, basicamente, a história da Europa Ocidental (mais especificamente da França), o que acaba reforçando, de certa forma, os estereótipos supracitados. Ou seja, a descrição desse período histórico acaba funcionando como uma metonímia, como se toda a Idade Média, um período popularmente conhecido do século V ao XV, pudesse ser resumida a partir de um modelo econômico específico de algumas regiões europeias – o feudalismo. Portanto, como esse saber da “Idade Média escolar”, que não contempla o potencial pedagógico da Idade Média, está contido nos livros didáticos, eles é nosso objeto e assunto do próximo tópico.

2. A Idade Média Nos Livros Didáticos: Uma Forma de Neomedievalismo

Muitas vezes, o primeiro contato do brasileiro com livros e, em muitos casos, o único, o livro didático é um instrumento crucial nas salas de aula, fato que torna urgente a constante melhoria desse tipo de material e, consequentemente, dos debates e críticas a respeito deles. Para além de uma questão de caráter teórico, o acompanhamento das principais produções historiográficas que visam ser utilizadas dentro das salas de aulas trata-se de uma questão de caráter prático de grande importância, sobretudo na questão dos referencias teóricos e seleção de conteúdos (Mateus 148), sempre se atentando para uma bibliografia atualizada e para uma ideologia que preze, acima de tudo, pela inclusão.

Portanto, sendo de acesso fácil e gratuito,

(...) o livro faz parte de um processo formador dos alunos, tanto no ensino fundamental como médio, por isso é indispensável que esse livro não apresente deficiências, anacronismos, juízos de valores, equívocos. Aspectos como esses farão parte de uma formação de alunos, comprometendo a compreensão, sustentando opiniões deformadas. (Mateus 149).

Desta forma, alguns livros didáticos serão aqui analisados a título de ilustrar a importância de debater sobre o ensino de História na Educação Básica na graduação, assunto, muitas vezes, deixado de lado nos cursos de licenciatura, por mais contraditório que possa parecer, em detrimento de pesquisas padrão dentro das áreas, seguindo a linha dos bacharelados. Assim, os livros que serão analisados no capítulo são: História 7.º ano Projeto Radix, de Cláudio Vicentino1; História Geral e do Brasil, destinado ao 1º ano do Ensino Médio, de Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo2; e, por fim, História 3, destinado as turmas do já em desuso 2.º grau, dos autores Ricardo Faria3, Adhemar Marques4 e Flávio Berutti5.

Válido ressaltar também que a escolha desses livros se deu por se tratar de produções de grande circulação e do renome dos autores. Além disso, a escolha referente às séries (dois de fundamental e um de médio), assim como as datas de lançamento (década de 1990, anos 2000 e década de 2010), se dá para mostrar uma variação de abordagem tanto cronológica como relacionada à escolaridade, pretendendo mostrar que a diferença não é muita e que a problemática é a mesma.

2.1. Análise da Idade Média no Livro Didático: História 7.º Ano Projeto Radix (2010)

Produzido, em 2010, por Cláudio Vicentino e destinado às turmas do 7.º ano do Ensino Fundamental, o livro apresenta 14 capítulos6 sendo 4 deles relacionados à Idade Média, são eles: Europa: as migrações e o feudalismo; Igreja e poder na Idade Média; Idade Média e o Oriente; e A Baixa Idade Média europeia. Todos esses capítulos totalizam 90 páginas sobre o período histórico, conteúdo extenso demais para ser analisado em todos os aspectos em um artigo. Dessa forma, a análise será feita seguindo a lógica do que até aqui foi apresentado, ou seja, como o livro didático também utiliza da Idade Média para reforçar um discurso, mesmo que sem intenção explícita, eurocêntrico e excludente, apresentando um conteúdo no qual o período histórico da Idade Média correspondesse à história da Europa e a mais ninguém, uma metonímia. Além disso, destaco que há um gritante silenciamento das mulheres nesses livros didáticos, como se elas não existissem.

O capítulo primeiro da obra, Europa: as migrações e o feudalismo, começa com duas indagações “Idade Média – quando?” e “Idade Média – onde?”. Nelas, são abordados alguns temas como a nomenclatura do período histórico, seu começo e fim e onde ela ocorreu. Ao discutir a nomenclatura, Vicentino destaca que a Idade Média tem esse nome porque “indica algo que está entre duas coisas, no meio. A Idade Média, [...] está no meio, entre a Antiguidade e a Idade Moderna.” (Vicentino 13). Entretanto, por mais que o autor inicie essa polêmica discussão, ele não a termina, ou seja, não aborda que esse nome é pejorativo e é uma construção de séculos, extremamente reforçada no Renascimento como propaganda da Modernidade europeia. Além disso, Vicentino destaca algumas datas possíveis para o começo e o fim da Idade Média, todas compatíveis com a História da Europa Ocidental7 e a explicação para isso é, logo no começo do livro, a exclusão de qualquer outra etnia para se contar a história da Idade Média, visto que, para Vicentino, “A Idade Média se refere não apenas a um período, mas um lugar: a Europa Ocidental. Foi ali que se desenvolveu uma visão de mundo, um modo de agir e de se organizar, isto é, uma cultura que chamamos de ‘medieval’” (Vicentino 13).

Além disso, ao abordar a questão das migrações dos povos não-romanos, o autor utiliza a já em desuso expressão “bárbaros” (Vicentino, p. 16-20) e todo capítulo é destinado a tratar da ascensão e queda do Reino Franco e, posteriormente, da formação do Feudalismo, abordando a clássica sociedade feudal estamental, seus impostos abusivos e suas divisões feudais. Assim, o primeiro capítulo acerta precisamente em uma Idade Média eurocêntrica, relatando como se realidades condizentes a algumas regiões do que hoje convencionou-se chamar de França, Alemanha e Inglaterra traduzissem a lógica organizacional de toda a Idade Média (Cândido da Silva 6-7).

O capítulo segundo reforça ainda mais esses estereótipos. Destinado às questões da Igreja e seu poder na Idade Média, o livro mantém uma narrativa cristocêntrica, também típica de apenas uma parte da Europa Ocidental, que meramente narra fatos desde o surgimento do cristianismo e da Igreja Medieval, como a Questão das Investiduras, o Cisma do Oriente, até o apogeu da Igreja, relatando como ela tinha um grande poder não só espiritual como também político e econômico. Entretanto, Vicentino aborda pouquíssimo das heresias (escreve pouco mais de meia página sobre os Cátaros e nada mais) e dos cristianismos populares, extremamente comuns na época, o que acaba reforçando uma ideia de Idade Média enrijecida, como se todos aceitassem passivamente as imposições litúrgicas da Igreja Católica. Além disso, também não aborda nada a respeito de outras religiões bastante populares presentes em outras regiões como na África, Ásia, Oriente Médio e até dentro da própria Europa (nela, havia, no mínimo, a presença do judaísmo e do islamismo), ou mesmo sequer do contato dos europeus ocidentais com essas religiões, levando a crer, mais uma vez, que falar de Idade Média é, necessariamente, falar de Europa Ocidental.

O capítulo terceiro, A Idade Média e o Oriente, como o nome sugere, visa a tirar o foco da Europa Ocidental e abordar outras regiões e culturas e, por mais que o autor acerte na proposta de tentar introduzir o Oriente Medieval para os estudantes, acredito que ela é bastante limitada. Primeiramente, metade do capítulo trata de Bizâncio, descendente do Império Romano e também cristão, o que reforça a associação de Idade Média e Europa, sobretudo quando o autor diz, sem questionamentos, que

Bizâncio, ou Constantinopla, sofreu inúmeros ataques militares e também perdeu progressivamente o controle sobre o comércio com o Oriente. No final da Idade Média, dada sua posição estratégica, tornou-se o alvo principal da expansão dos turcos-otomanos até que, em 1453, foi dominada por eles.

Esse evento coincidiu com a expansão marítima europeia e foi considerado um dos marcos do final da Idade Média. É chamado por alguns historiadores de ‘Queda de Bizâncio’ ou ‘Tomada de Constantinopla’. (Vicentino 59).

A ausência de questionamentos em relação à Queda de Bizâncio ser considerada como “o fim da Idade Média” e como essas marcações temporais fazem parte de um plano de dominação concreto acabam reforçando a Europa como o grande protagonista do mundo, levando os alunos a acreditarem que a divisão quadripartite da História é natural, e não um processo em que a Europa impõe a sua História como se fosse a História do mundo.

Na outra metade do capítulo, o autor trata da civilização árabe, um acerto, mas com algumas ressalvas. Pela primeira (e única) vez, o autor sai da Europa, onde inicialmente foram abordados alguns aspectos sociais da Península Arábica e como se deu o processo de unificação feito por Maomé, evidenciando alguns aspectos culturais interessantes, sobretudo na última página, na qual são expostas diversas contribuições culturais e científicas realizadas pelos árabes na Idade Média. O grande problema é que, das noventa páginas dedicadas à Idade Média, apenas oito tratam da civilização árabe e pouquíssimo se fala das trocas culturais que aconteceram entre árabes e europeus, sobretudo na Península Ibérica, ou seja, tudo tratado como dois mundos completamente separados. Assim, fica claro que a abordagem do autor em relação ao Oriente Médio é limitada e, além disso, outros continentes como África e Ásia são completamente esquecidos, e somente serão abordados quando forem submetidos à colonização europeia, mostrando como é urgente mudarmos o nosso referencial teórico da Idade Média escolar na produção de livros didáticos com o foco em sermos menos eurocêntricos, incluindo novas culturas e etnias por meio de novas abordagens que serão discutidas doravante.

Por fim, no capítulo quarto, Vicentino trata da Baixa Idade Média europeia, último capítulo do livro destinado ao período histórico analisado. Nele, o autor aborda o renascimento cultural e urbano, destacando a figura dos comerciantes sem problematizá-la em nenhum momento, visto que o comerciante na Idade Média era uma figura controversa e frequentemente importunada em sua atividade profissional pela Igreja, conforme destacado por Jacques Le Goff. em “Mercadores e Banqueiros da Idade Média”. Além disso, o autor destaca que

Com essas transações começou a se estruturar um novo mundo europeu que ultrapassava as fronteiras dos feudos. Foi retomada a cunhagem de moedas para facilitar as trocas comerciais que deixaram o escambo e passaram a ser mediadas pelo dinheiro. Assim, o relacionamento entre os vários vilarejos e pequenas cidades ficou cada vez mais intenso. (Vicentino 81).

Com isso, Vicentino traz uma análise que corrobora com o estereótipo de uma Idade Média estática, resumida pelo feudalismo, ignorando trocas culturais, comerciais e interpessoais que aconteciam desde os primeiros séculos da Idade Média entre Ásia, África e Europa.

Já quando trata das Cruzadas, Vicentino afirma que duas delas merecem destaque: a Terceira Cruzada, que ficou conhecida como a Cruzada dos Reis, que contou com a participação de Filipe Augusto, Ricardo Coração de Leão e Frederico Barba Ruiva e a Quarta Cruzada, conhecida por desviar radicalmente de seu plano inicial, tomar a Palestina, e rumar para Constantinopla, dominando-a.

Dessa forma, o autor nessa parte e em todas as outras noventa páginas silenciou a participação feminina na Idade Média, ignorando a perspectiva dos Estudos de Gênero que poderia ajudar a quebrar alguns dos muitos estereótipos apontados até então (Mateus 162). Assim, não há, neste tópico e nem em mais nenhum outro, a valorização da imagem emancipadora da mulher, o que contribui para a naturalização da desigualdade de gênero, visto que os estudantes não terão contato com a mulher como sujeito histórico ativo.

2.2. Análise da Idade Média no Livro Didático: História Geral e do Brasil (2014) - 1º Ano do Ensino Médio

Produzido em 2014 por Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, o livro didático História Geral e do Brasil é destinado às turmas do 1.º ano do Ensino Médio, apresentando 3 unidades8 e 9 capítulos9. Sendo a unidade 3 “A Europa, periferia do mundo” e os capítulos presentes nela: 1) “O Império Bizantino, o Islã e o panorama mundial”; 2) “O surgimento da Europa”; 3) “Economia, sociedade e cultura medieval”; e 4) “O mundo às vésperas do século XVI”, as partes condizentes com o recorte cronológico adotado: a Idade Média. Todos esses capítulos totalizam uma produção extensa de 76 páginas e, dessa forma, o intuito da análise seguirá a linha da análise feita no livro anterior.

No capítulo primeiro, “O Império Bizantino, o Islã e o panorama mundial”, os autores propõem tratar dos anos iniciais do que chamaram de “Idade Média europeia” (Vicentino e Dorigo 178), abordando o Império Romano com capital em Bizâncio e também de outras regiões, culturas, etnias e religiões, especialmente nos subtópicos “na África”; “os Árabes e o islamismo”; “Na China”; e, por fim, “na América”. Nestes subtópicos, a abordagem foi bastante interessante, sobretudo, ao introduzir aos estudantes o potencial interdisciplinar das pesquisas históricas para conseguir superar a ausência de documentação escrita (Vicentino e Dorigo 191-192). Entretanto, como dito anteriormente, os autores entendem a Idade Média como europeia, o que desencadeia uma série de problemas.

Dentre esses problemas, talvez, o maior deles seja que, entre o tópico do Império Bizantino e os demais supracitados, está o tópico “E quem não estava no século V d.C.?” e, nas palavras dos autores,

No quadro final da chamada Antiguidade Clássica, por exemplo, só ‘estava’ no século V quem fazia parte de alguma sociedade cristã. A Igreja foi uma das poucas instituições que sobreviveram intactas à desagregação do Império Romano do Ocidente. Utilizando boa parte de sua estrutura, expandiu-se até as fronteiras tanto do antigo império do Ocidente quanto do Império Romano do Oriente, ou Bizantino. Mas havia povos que ‘não estavam’ no século V, porque não se pautavam pelo cristianismo e tinham outros marcos para contar e medir seu tempo. (Vicentino e Dorigo 183).

Apesar de não duvidar da boa vontade dos autores e conseguir enxergar uma tentativa de sair do eurocentrismo ao designar a Idade Média como uma história da Europa, o tiro acabou saindo pela culatra pelo fato de que faltou explicar o porquê dessa divisão temporal ter prevalecido em detrimento das outras. Ainda hoje, utilizamos da divisão temporal criada pelos europeus10, com marcos e pontos de viradas que atendem à visão europeia em relação ao mundo. Portanto, ao invés de tirar essas outras sociedades não-europeias do século V, o ideal seria colocá-las, explicando o porquê da sua visão de mundo não ter prevalecido, mas exaltando sua importância e protagonismo na época, visto que a Idade Média foi um período de intensa troca interpessoal, cultural e econômica entre diversas partes do mundo, sobretudo África, Ásia, Europa e Oriente Médio.

No capítulo segundo, “O surgimento da Europa”, a palavra “bárbaro” é utilizada sem grandes questionamentos, assim como no livro anteriormente analisado. Entretanto, o capítulo é inaugurado com um importante questionamento, nele, os autores trazem à discussão “Até que ponto a construção do espaço não é um triunfo de um projeto, de uma vontade coletiva construída entre tantas opções?” (Vicentino e Dorigo 196). Posteriormente, abordam a formação da Europa como continente, tratando da ascensão dos reinos não-romanos (“bárbaros”), descrevendo-a como um “processo dinâmico em que diferentes culturas não se sobrepuseram completamente umas às outras, mas se mesclaram em influências e diálogos diversos.” (Vicentino e Dorigo 197). Entretanto, por mais que sejam discussões importantes, a bibliografia utilizada pelos autores para tratar delas são obras de Marc Bloch, George Duby e Pierre Riché, medievalistas cujo auge das carreiras foi entre a década de 1930 e a década de 1970, o que torna evidente a falta de uma bibliografia atualizada, que trate de questões atuais que ajudem os alunos a se aproximarem da Idade Média.

Também neste capítulo são abordadas as Cruzadas, que evidenciam o mesmo erro do livro anterior, em que, mais uma vez, a participação feminina nessas expedições é silenciada. Com isso, perde-se a oportunidade de utilizar esse período histórico para diversos fins didáticos, como desenvolver nos estudantes, sobretudo do gênero feminino, uma empatia histórica que certamente contribuiria com o desenvolvimento do conceito de alteridade, tão importante para estudar as humanidades e entender melhor as pessoas à sua volta em todo o mundo, contribuindo para uma formação menos excludente ao ser valorizada a prática de se colocar no lugar do outro, entendendo que a sua cultura não é nem pior e nem melhor, mas apenas diferente.

Ainda sobre as Cruzadas, Vicentino e Dorigo afirmam que elas tiveram um papel crucial na formação da mentalidade europeia. Nas palavras dos autores,

Essa mentalidade levou à construção da imagem dos europeus como capazes de impor sua visão de mundo e seus valores a todos os povos com quem entraram em contato, os quais consideravam ‘os outros’. [...] Para grande parte da historiografia dos países árabes, as Cruzadas e a ocupação de Jerusalém foram a primeira manifestação do imperialismo ocidental, que iria revelar-se de modo mais incisivo nos séculos seguintes. (Vicentino e Dorigo 206).

A discussão para por aí, ou seja, foi perdida mais uma boa oportunidade de trazer questionamentos do porquê a Idade Média ser tão eurocêntrica e a forma como ela mesma é contada faz parte desse imperialismo ocidental, no qual o Ocidente construiu a sua própria história, que parte da idade Média, e também construiu a história — ou ausência dela — do Oriente.

Ao final do capítulo, os autores falam a respeito do renascimento comercial e urbano na Europa e, assim como no livro didático anterior, a figura do comerciante não é problematizada. Por mais que rapidamente a filosofia da escolástica seja tratada, mostrando como lucro e a usura11 eram considerados pecados capitais, a figura do mercador parece que surge naturalmente, de forma extremamente teleológica, como se ela estivesse ali o tempo todo esperando uma oportunidade para aparecer. Análise que vem do estereótipo da Idade Média estagnada, como se comércio e medievo não pudessem estar na mesma frase, ou seja, a figura do mercador surgiu meramente porque a Idade Média estava “dando lugar” à Modernidade.

Por fim, no capítulo terceiro, “Economia, sociedade e cultura medieval”, Vicentino e Dorigo dissertam a respeito do feudalismo, da Igreja, da arquitetura, da pintura e outros diversos aspectos da cultural daquilo que os autores chamaram de Europa ocidental medieval. Neste capítulo, pela primeira vez, há um tópico destinado exclusivamente a tratar da mulher na Idade Média, chamado “Sobre a mulher na Idade Média”. Entretanto, o tópico é deslocado do texto principal, que aborda as relações de suserania e vassalagem, e se restringe a falar da mulher medieval nobre, discutindo muito a condição feminina de “Eva pecadora”, presente no pensamento religioso medieval, mas sem entrar no debate a respeito das problemáticas dessa e de outras representações, visto que, nas palavras de Esteffane Viana Felisberto e Marcos de Araújo Oliveira:

Aliada aos interesses dos governantes em manter a hierarquia dos sexos, a Igreja utilizou das figuras femininas da Bíblia, como Eva e Maria, para difundir quais condutas as mulheres deveriam adotar ou reprimir. Dessa forma, podemos compreender através dessas fontes imagéticas, que as representações de Eva e Maria carregavam os ideais religiosos, que mantiveram sólidos os padrões de “ser e agir” ao público feminino medieval. (Felisberto e Araújo 65).

Além disso, os autores retratam as mulheres como conciliadoras de tratados a partir de casamentos e também enfatizam sua importância em relação à maternidade, visto que, para os autores: “Ser mãe era a principal obrigação feminina e boa parte da vida adulta das mulheres da aristocracia era tomada pela gravidez”. (Vicentino e Dorigo 217).

Por mais que este capítulo apresente muito conteúdo para além da Europa, com diversas passagens sobre a cultura dos árabes, islãs, chineses etc., relatando trocas culturais, econômicas e interpessoais entre diversas etnias, tudo parece ser em segundo plano, visto que mais da metade do capítulo apenas relata uma história que privilegia a memorização, dando extrema importância para o feudalismo e suas relações, o que é uma realidade que sequer atende a Europa Ocidental, mas sim países como Alemanha, Inglaterra e, sobretudo, França.

Finalmente, ao iniciar o conteúdo sobre Idade Média, Vicentino e Dorigo destacaram que

O estuda da Idade Média é muito importante para nós, pois a herança europeia tem papel significativo na formação da sociedade brasileira. Em outras palavras, as heranças medievais da Europa são importantes para entendermos a nós mesmos. (Vicentino e Dorigo 176).

Assim, a justificativa dos autores para passar três capítulos falando sobre Idade Média, com grande enfoque na “Europa Ocidental”, faz pouco sentido, visto que a Península Ibérica, região onde se encontra Portugal, passou mais de sete séculos sob ocupação muçulmana e quase nenhum enfoque é dado à economia, à sociedade e à cultura medieval dos muçulmanos sob uma prerrogativa de que a Idade Média pertence aos europeus ocidentais.

Portanto, o livro didático termina da forma como começa: eurocêntrico. Propagando bastante o estereótipo de “Idade Média escolar” que pouco descontrói os estereótipos que os alunos trazem de seu cotidiano, permanecendo assim com uma visão de uma Idade Média lúdica, masculina, heteronormativa, ocidental, cristocêntrica, feudal, com diversos abusos de poder, fome, guerra e peste. O que de pedagógico dá para se tirar disso? O potencial pedagógico da Idade Média é gigantesco, mas seu esgotamento não será objetivo deste artigo.

2.3. Análise da Idade Média no Livro Didático: História 3 (1997) - 3.º Ano do 2.º Grau

O último livro didático a ser analisado foi produzido, em 1997, por Ricardo Faria, Adhemar Marques e Flávio Berutti. Destinado às turmas do 3.º ano do antigo 2.º grau (atual Ensino Médio), o livro didático História apresenta 4 unidades12 divididas em 6 ou mais capítulos, sendo a unidade 1 “A transição do Feudalismo ao Capitalismo”, em seu capítulo primeiro “A Crise do Feudalismo nos séculos XIV/XV”, a parte que será analisada. Apresentando um conteúdo de pouco mais de 15 páginas exclusivamente do período que se convencionou chamar de “Baixa Idade Média”, a análise deste livro tem como objetivo mostrar outras formas em que a Idade Média é utilizada nos livros didáticos, além de contemplar um período mais recuado, 1997, e outro currículo escolar.

História 3 tem como objetivo “[...] analisar o processo histórico das sociedades ocidentais, tendo como eixo central a história do capitalismo, as contestações teóricas e práticas e as suas crises e alternativas.” (Ricardo, et al. 5). Assim, a Idade Média é entendida a partir da produção marxista das décadas de 1940 e 1950, na qual a crise do modelo de produção feudal era entendida como a passagem para outro modelo de produção, o capitalismo.

Tratando somente dos séculos finais da Idade Média, o livro didático descreve o Feudalismo de uma forma muito parecida com os livros anteriores e, por mais que deixe claro que sua análise seja apenas da Europa Ocidental, os autores deixam claro que “Isto não quer dizer que o feudalismo não tenha existido em outros locais e, sim, que, no momento, apenas essa área será destacada.” (Ricardo, et al.13), corroborando com teses extremamente eurocêntricas e hoje antiquadas, por mais que ainda tenham seus defensores, de modelos feudais em regiões como Japão e América Latina.

Por se tratar de um livro didático cujo objetivo é relatar a “história do capitalismo” em uma perspectiva marxista (como se isso não fosse eurocentrismo suficiente), chama a atenção também como os autores tratam essa “passagem do feudalismo ao capitalismo” de forma extremamente teleológica, o que fica claro no trecho que os autores utilizaram da obra O Feudalismo, de Hilário Franco Jr. Nela, o historiador brasileiro afirma que

Diante da crise agrária fazia-se necessária a conquista de novas áreas produtoras. Diante da crise demográfica fazia-se necessária o domínio sobre populações não-européias. Diante da crise monetária fazia-se necessária a descoberta de novas fontes de minérios [...] Diante da crise espiritual fazia-se necessária uma nova visão de Deus e do homem. Começavam os novos tempos (Franco Jr., citado por Ricardo, et al. 20).

Assim, a Idade Média se resume à peste, à guerra, à morte, ao abuso de poder e ao abuso clerical, com tudo isso gerando uma crise no sistema de produção feudal e, consequentemente, surge uma nova forma de viver e entender o mundo baseada num sistema de produção capitalista. Entretanto, isso é completamente fora da realidade quando se lembra que o feudalismo sequer é uma unanimidade dentro Europa Ocidental inteira, o que só mostra que, já em 1997, a produção historiografia brasileira era francófona.

Por fim, como já dito anteriormente, o livro didático contempla somente a Europa Ocidental, por mais que entenda que possa haver feudalismo em diversos lugares ao redor do mundo. Também nada se fala em relação às mulheres no medievo, às heresias, ou quaisquer outros assuntos que, minimamente, quebrem com os estereótipos da “Idade Média Escolar”.

Considerações Finais

O objetivo deste ensaio era o de esclarecer que os usos da Idade Média no nosso cotidiano constroem esse período histórico de forma eurocêntrica, branca, masculina, heteronormativa, lúdica etc., com os alunos muitas vezes levando esses estereótipos para dentro e fora da sala de aula. Entretanto, nos livros didáticos, que, muitas vezes, são o primeiro contato que os alunos têm em relação ao mundo acadêmico, esses paradigmas não são quebrados, mas sim reforçados e amplificados, visto que esses mesmos estudantes se deparam com uma Idade Média não só eurocêntrica, branca, heteronormativa e masculina, como também cristocêntrica, feudal, repleta de fome, guerra, peste e abusos de poder. Ou seja, os livros didáticos contribuem muito pouco em relação à quebra dos primeiros estereótipos citados.

Dessa forma, entendendo o material a respeito da Idade Média presente nos livros didáticos como um neomedievalismo, pode-se perceber que, por décadas, os livros didáticos de História brasileiros, independentes do segmento escolar, utilizam-se de um discurso reproduzido e pouco crítico para tratar desse período histórico – ao qual chamei de Idade Média Escolar. Assim, a exposição mobilizante presente nos livros didáticos também faz uso desse passado para construir uma narrativa igualmente excludente, mesmo que, talvez, a intenção dos autores desses materiais fosse outra.

O neomedievalismo, portanto, é uma oportunidade para que seja desenvolvida uma nova abordagem teórica que facilite a compreensão do medievalismo contemporâneo. Abordagem essa capaz de superar o próprio pós-modernismo e que consiga evidenciar de forma crítica a divisão cada vez mais incompreensível entre a cultura de mercadorias (na qual os livros didáticos estão inseridos) e a produção acadêmica (Fitzpatrick 27). Importa também dizer que, por mais que algumas críticas tenham sido tecidas em relação ao conteúdo presente nesses livros, o livro didático é, independentemente de seu conteúdo, um neomedievalismo, justamente por se tratar de uma mercadoria que monta e remonta a categoria simbólica da Idade Média. Assim, o ponto em questão é tornar evidente como que, caso não nos atentemos para esse problema (a mera reprodução eurocêntrica da Idade Média nestes materiais), as consequências continuarão sendo apenas reprodutoras e não transformadoras, com os materiais didáticos propagando uma Idade Média que exclui do ponto de vista étnico, de gênero, religioso e de raça.

Referências Bibliográficas

Vídeos

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Livros didáticos

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Vicentino, Claudio. História 7.o Ano Projeto Radix. 1st ed., São Paulo, Scipione, 2010.

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1. Conhecido autor de obras didáticas e paradidáticas para Ensino Fundamental e Médio, Cláudio Vicentino é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e professor de cursos pré-vestibulares e de Ensino Média.

2. Também conhecido autor de obras didáticas, é bacharel em e licenciado em História pela Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor de História em cursos pré-vestibulares e de Ensino Médio.

3. Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, com especializações em História Moderna e Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

4. Bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com especializações em História Moderna e Contemporânea pela mesma instituição.

5. Licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, com especialização em Metodologia da História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

6. Capítulos: 1- Europa: as migrações e o feudalismo; 2- Igreja e poder na Idade Média; 3- A Idade Média e o Oriente; 4- A Baixa Idade Média europeia; 5-A expansão ultramarina europeia; 6- África: dos reinos antigos ao tráfico atlântico de escravos; 7 O Renascimento cultural; 8- A Reforma religiosa; 9- O Estado absolutista europeu; 10- O mercantilismo e a colonização da América; 11- A administração na América portuguesa; 12- O açúcar e a América Portuguesa; 13- As fronteiras na América portuguesa; 14- Luxo e pobreza nas Minas Gerais.

7. Para o começo, o autor destaca 330 (liberdade de culto para os cristãos); 395 (divisão do Império Romano); e 476 (queda do Império Romano do Ocidente). Para o fim, são destacadas as datas de 1453 (tomada de Constantinopla pelos turcos); 1492 (chegada de Colombo à América); e 1517 (início da Reforma Protestante).

8. Unidades: 1 – Os primeiros agrupamentos humanos; 2 – Civilizações antigas; 3 – A Europa, periferia do mundo.

9. Capítulos: 1 – Em busca de nossos ancestrais; 2 – A ocupação do continente em que vivemos; 3 – A vida em cidades; 4 – A Grécia Antiga; 5 – A civilização romana; 6 – O Império Bizantino, o Islã e o panorama mundial; 7 – O surgimento da Europa; 8 Economia, sociedade e cultura medieval; 9 – O mundo às vésperas do século XVI.

10. Neste trabalho, a divisão quadripartite da História é utilizada para fim didático, única e exclusivamente. É aceitar que, de certa forma, o projeto humanista venceu e é preciso desconstrui-lo a partir da nomenclatura desse próprio projeto.

11. Contrato de empréstimo com cláusula de pagamento de juros por parte do devedor.

12. Unidades: 1 – A transição do Feudalismo ao Capitalismo; 2 – A consolidação do Capitalismo; 3 – O Capitalismo contemporâneo: crises e alternativas (1914-1945); 4 – As configurações do mundo contemporâneo.