Combates pela “verdadeira história” da Igreja: neomedievalismo na imprensa católica do Brasil monárquico

Fighting for the “true history” of the Church: neo-medievalism in the Catholic press of monarchical Brazil

Pedro Henrique CAVALCANTE DE MEDEIROS
Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), pesquisador do Laboratório de Estudos dos
Protestantismos (LABEP), Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5089-1628
prof.phcmedeiros@gmail.com

Resumo: Este artigo propõe a discussão do conceito de neomedievalismo aplicado ao processo da reforma católica no Brasil do século XIX. A relação entre temporalidade e religião na modernidade e suas implicações sobre o entendimento da história conforme foi proposto na imprensa religiosa católica e protestante guia esta pesquisa. A questão a ser respondida é saber se pelo discurso produzido em jornais católicos ultramontanos, particularmente no jornal O Apóstolo, o de maior longevidade do Império brasileiro, é possível perceber a apropriação de elementos medievais que dessem sustentação para o projeto reformista católico. A referência metodológica que guia este texto é o contextualismo linguístico da Escola de Cambridge, principalmente, a partir das propostas de Quentin Skinner.

Palavras-chave: história da igreja; temporalidade; neomedievalismo; imprensa.

Abstract: This article proposes a discussion of the concept of neo-medievalism applied to the process of Catholic reform in 19th century Brazil. The relationship between temporality and religion in modernity and its implications for the understanding of history as proposed in the Catholic and Protestant religious press guides this research. The question to be answered is whether the discourse produced in ultramontane Catholic newspapers, particularly O Apóstolo, the longest-running newspaper in the Brazilian Empire, shows the appropriation of medieval elements to support the Catholic reformist project. The methodological reference that guides this text is the linguistic contextualism of the Cambridge School, mainly based on the proposals of Quentin Skinner.

Keywords: church history; temporality; neomedievalism; press.

Recibido: 12/03/2024

Aceptado: 02/04/2024

Cómo citar: Cavalcante de Medeiros, P. H. (2024). Combates pela “verdadeira história” da Igreja: neomedievalismo na imprensa católica do Brasil monárquico. Neomedieval, 1, 19-44. https://doi.org/10.33732/nmv.1.8

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1. Introdução

Este artigo propõe a discussão do conceito de neomedievalismo aplicado ao processo da reforma católica no Brasil do século XIX. A relação entre temporalidade e religião na modernidade e suas implicações sobre o entendimento da história conforme foi proposto na imprensa religiosa católica e protestante guia esta pesquisa. A questão a ser respondida é saber se pelo discurso produzido em jornais católicos ultramontanos, particularmente no jornal O Apóstolo, o de maior longevidade do Império brasileiro, é possível perceber a apropriação de elementos medievais que dessem sustentação para o projeto reformista ultramontano.

Ao longo do século XIX, no período pós-revolução francesa, com o desenvolvimento da consciência história a partir dos conceitos de modernidade e progresso, o catolicismo mundial reagiu com ações e discursos de rejeição à modernidade e a todos os seus elementos, dentre eles, o liberalismo e o avanço do protestantismo. Esse também foi o período de expansão das missões mundiais protestantes, em sua maioria, a partir dos Estados Unidos. No Brasil, a partir de uma iniciativa do próprio imperador d. Pedro II, inicia-se a reforma do catolicismo, conhecida como reforma ultramontana, que, a princípio, reproduzia o discurso antimodernista da Santa Sé.

A hipótese posta à prova neste artigo é que, a partir da instrumentalidade da imprensa, um elemento da modernidade, católicos ultramontanos construíram e difundiram as ideias reformistas sustentados em uma consciência histórica de reorganizar a sociedade a partir do resgate e restauração do tempo medieval, no qual a Igreja, considerada uma sociedade perfeita, era independente e mantinha sob sua égide o poder civil. Esse resgate do medievo seria essencial para haver o verdadeiro progresso das sociedades. Isso, entretanto, ocorreu em meio a disputas de ideias sobre a verdadeira história da igreja com os missionários protestantes, principalmente. Para verificar essa hipótese, trouxemos para análise o jornal Imprensa Evangélica, o periódico mais longevo e de maior relevância no protestantismo brasileiro do século XIX.

O caminho percorrido para produção deste texto, leva em consideração as propostas apresentadas pela história das ideias de Quentin Skinner. Conforme nos ensina Skinner, na análise histórica de um autor, é necessário considerar o contexto e o vocabulário linguístico do período de formação de qualquer obra filosófica, política ou, neste caso, religiosa. A observação do diálogo, dos confrontos, das oposições, dos endossos da criação de novos significados precisam ser levados em conta no momento do exame de determinado texto. Somente assim é possível compreender os projetos de determinado autor ao escrever a sua obra:

Pois compreender as questões que um pensador formula, e o que ele faz com os conceitos a seu dispor, equivale a compreender algumas de suas intenções básicas ao escrever, e portanto implica esclarecer exatamente o que ele pode ter querido significar com o que disse – ou deixou de dizer (SKINNER 13).

2. Os objetivos da Reforma Ultramontana

Ao longo do Segundo Reinado do Império do Brasil, na segunda metade do século XIX, o catolicismo brasileiro atravessou o processo conhecido como reforma ultramontana. A iniciativa para o início dessa reforma partiu do próprio imperador d. Pedro II, ao ter nomeado, em 1844, o bispo d. Antônio Vicente Ferreira Viçoso para a diocese de Mariana, Minas Gerais.

Esse processo, entretanto, se teve como propósito inicial a reorganização da Igreja Católica no Brasil e o disciplinamento do clero, no sentido de o afastar das lutas político-partidárias, tão breve resultou em uma luta pela emancipação da Igreja Católica brasileira da égide do poder civil, contra princípios regalistas, tendo como ápice o conjunto de eventos ocorridos na década de 1870, conhecido como Questão Religiosa, que culminou na prisão, em 1873, de dois bispos brasileiros, d. frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira e d. Antônio Macedo Costa, por decidirem se manter fieis às leis da Santa Sé em detrimento das leis brasileiras. Por fim, após esses eventos, a historiografia tem demonstrado como as autoridades eclesiásticas passaram a ser cada vez mais indiferentes aos destinos do Império.

As razões tanto para a necessidade da reforma quanto para a crise que resultou desse processo são encontradas na maneira como se constituiu o padroado brasileiro, isto é, o regime de união entre Igreja e Estado. De certa forma, o padroado brasileiro era herdeiro do padroado lusitano, porém, com uma diferença fundamental, isto é, o padroado brasileiro havia sido estabelecido pela Constituição de 1824, isto é, o sistema era constitucional, regulado pelo governo, não foi considerado como uma concessão de um direito pela Santa Sé. De acordo com Ítalo Santirocchi:

As evidências são óbvias: a nova Constituição nasceu em um berço regalista. O direito de nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos, que eram uma concessão dada pela Sé Apostólica, por meio de bulas aos reis portugueses e ao grão-mestrado da Ordem de Cristo, passaram a ser considerados como um direito constitucional do Poder Executivo e unilateralmente estabelecido, sem prévia discussão ou Concordata com a Santa Sé (SANTIROCCHI 62).

Isso representou a coroação do regalismo de tradição lusitana. O regalismo alcançou o ápice de execução prática em Portugal durante as reformas do marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII, ao submeter a autoridade eclesiástica à autoridade civil, buscando emancipar a igreja lusitana da autoridade pontifícia. Uma das principais consequências dessas reformas, principalmente a reforma dos estatutos da Universidade de Coimbra, foi a formação de um conjunto de clérigos que dedicaram suas vidas para os assuntos estatais e para as questões políticas, muitos dos quais se envolveram nas grandes revoltas do início do século XIX no Brasil, como a Revolução Pernambucana de 1817, conhecida como a Revolução dos Padres, em razão do expressivo número de clérigos que participaram do levante.

Assim, a partir da nomeação de d. Viçoso, o primeiro propósito dos bispos ultramontanos foi a reforma dos seminários de suas dioceses, ao projetarem a formação de um novo corpo de clérigos com uma nova mentalidade. Além disso, houve uma maior defesa de uma visão de cristandade em que os interesses da Igreja, centralizada na autoridade do papa, deveriam ser defendidos e protegidos contra o regalismo vigente no Brasil.

Porém, é importante salientar que as ações produzidas nesta reforma, apesar de terem como foco central a maior proximidade e submissão aos direcionamentos da Santa Sé, não podem ser consideradas apenas como um processo de romanização, ou seja, como uma submissão unilateral e direta às ordens emanadas da Santa Sé. Como explicado por Luciano Dutra, “chamar tais movimentos de ‘romanização’ e seus promotores de ‘agentes de Roma’ reflete, sem dúvida, uma certa tendência a rejeitar que a Igreja tenha uma hierarquia à qual cabe zelar pela identidade da fé e de suas manifestações” (DUTRA NETO 37). Em razão disso, Dutra considera que a reforma ultramontana foi um processo de conservação e correção de alguns “desvios, enfim, aspectos que o descaracterizavam como tal pela ausência, quase total de uma identidade doutrinária” (DUTRA NETO 38).

Ítalo Santirocchi, acrescenta que, ao analisar os documentos arquivados no Vaticano, não foram encontradas ordens direcionadas de Roma para o Brasil no sentido de se realizar ou como fazer a reforma da igreja brasileira. Porém, o que ocorreu foi

Uma constante troca de informações e discussão entre bispos, Governo e Santa Sé (e ao interno da estrutura desta última, entre os Cardinais das várias Sacras Congregações e da Secretaria de Estado), sobre cada um dos aspectos da religiosidade no Brasil, exatamente com intuito de tomar decisões que fossem de acordo com as exigências e especificidades locais de cada diocese brasileira e também do Brasil como um todo. [...]

Pesquisando no Arquivo Secreto Vaticano, ao confrontar com instruções e as ordens enviadas por Roma ao seu representante no Brasil e aos bispos brasileiros, encontrei um cenário muito diverso daquele pregado pela romanização, me deparei com bispos que haviam ideias próprias para reformar a Igreja. Tais ideias surgiam das exigências reais e palpáveis nascidas da normal administração das suas dioceses. E não só, existiam resistências a algumas ordens e instruções vindas de Roma, existiram ordens que não foram cumpridas e, o que é mais importante, muitos posicionamentos da Santa Sé não partiram de ideias pré-concebidas, mas de uma atenta analise dos ofícios, cartas e documentos enviados pelos representantes, pelos prelados e por laicos brasileiros, numa tentativa de compreender a especificidade brasileira e do desenvolvimento do catolicismo no nosso país (SANTIROCCHI 32).

Ainda assim, interessa-nos o fato de a reforma ultramontana brasileira ter-se dado em meio às reações antimodernistas da Igreja Católica, cujo maior símbolo foi a encíclica Quanta Cura, acompanhada pelo Syllabus Errorum,1 de 08 de dezembro de 1864. Esse antimodernismo, é importante assinalar, apresentou-se como uma percepção muito específica sobre o tempo e a história, isto é, um combate contra o progresso2 e um desejo de resgatar e restaurar o tempo medieval, principalmente na defesa da ideia da Igreja como sociedade perfeita, que não deve estar submetida ao poder civil dos estados nacionais. Ou seja, a reforma ultramontana brasileira não tinha apenas aspectos teológicos, políticos e sociais, mas foi realizada também, principalmente, por uma consciência de temporalidade compartilhada pelos diversos agentes envolvidos no processo.

3. A questão da temporalidade na Reforma Ultramontana

Em anos recentes, uma produção historiográfica tem sido desenvolvida, com notável cooperação internacional, para estudar a apropriação medieval desenvolvida por diversos grupos políticos e religiosos desde o século XIX, particularmente na América Latina e especialmente no Brasil. Esses estudos têm contribuído para o desenvolvimento do conceito teórico e do campo de estudos do neomedievalismo. Clínio Amaral e Nadia Altschul, defendem a utilização deste conceito da seguinte forma:

No sentido que entendemos o neomedievalismo, ele se oferece como uma potente teoria capaz de analisar uma série de aspectos da cultura latino-americana e pode contribuir para descolonizar o conhecimento (ALTSCHUL et al. 13).

Amaral e Bertarelli acrescentam que:

A idade média, mais do que um período histórico, é um conceito. E, como tal, foi construída durante um longo processo até propriamente emergir no século XIX. [...] Assim, o conceito de idade média foi criado, apropriado e ressignificado por meio dos interesses em jogo em cada contexto.

Tal conceito forma-se ao longo de um lento processo, que se desenvolve associado ao surgimento de um outro, o de tempos modernos (BERTARELLI and AMARAL 38).

Antes das discussões mais recentes sobre a teoria do neomedievalismo, entretanto, a relação entre a temporalidade e o pensamento católico ultramontano no Brasil como uma questão de resgate e restauração da Idade Média, em seus símbolos, atitudes, pensamento e política, já havia sido analisada por Ivan Manoel, ao demonstrar que:

Diante daquilo que lhe parecia ser o desdobramento lógico do mundo moderno – a completa destruição da sociedade humana – o grupo ultramontano delineou uma estratégia política de âmbito mundial para realizar o que lhe parecia necessário: a paralisação do pêndulo da história. Na verdade, o romantismo que impregnou fortemente os católicos conservadores do século XIX ia mais longe – não se tratava apenas de fazer parar o movimento histórico; tratava-se, acima de tudo, de fazer o pêndulo retornar ao seu ponto de repouso, tal como, supunham, ocorrera na Idade Média. Voltar à Idade Média significava reunir-se novamente, reconstruir a Unidade querida por Deus e destruída pelo pecado, dissolver-se novamente no Absoluto, reconstruir a Idade de Ouro perdida (MANOEL 124).

Essa antimodernidade católica era gerada pelo temor de que o progresso levaria à secularização do mundo e à consequente morte da religião. Porém, como indicado por Peter Berger, esse temor provou-se infundado. Para ele, a tese segundo a qual a secularização moderna teria sido o resultado do progresso e fruto do protestantismo não pode ser tomada de forma absoluta. Isso porque, ao longo do século XX, ao contrário de ter ocorrido a consolidação da secularização mundial, o que se percebeu foi o aumento do desejo pela religiosidade no mundo. Em suas palavras: “isso quer dizer que toda uma literatura escrita por historiadores e cientistas sociais vagamente chamada de ‘teoria da secularização’ está essencialmente equivocada” (BERGER 10).

Em razão disso, George Weigel defende que a história da Igreja Católica nos séculos XIX e XX pode ser explicada pelo conceito de ironia.3 Isso porque o temor que tomou conta de Pio IX e outros ultramontanos não provou ter fundamentos, isto é, não ocorreu a “morte da convicção religiosa” (tradução nossa)4 como consequência da modernidade. O mais curioso, contudo, foi o fato de certas verdades básicas sobre a Igreja terem sido redescobertas pela hierarquia ao longo desse período. A respeito disso, Weigel argumenta da seguinte maneira: “Mais ironicamente ainda, a redescoberta dessas verdades pela Igreja pode, só pode, colocar o catolicismo em posição de ajudar a modernidade secular a salvar-se da sua própria incoerência crescente” (tradução nossa).5

Esse pensamento estava sustentado na ideia de história da salvação. Segundo Ivan Manoel, na filosofia católica da história, a história do homem, compreendida entre a criação e o retorno de Cristo, configura-se da seguinte forma:

Marcha progressiva em direção ao maior aperfeiçoamento possível (aperfeiçoamento que é denominado santificação), para permitir o ingresso na eternidade, ao lado de Deus. Por isso, segundo a doutrina católica, a verdadeira história do homem é aquela que permite a plena realização do projeto salvífico do Criador, e a salvação somente poderá ser realizada historicamente, isto é, no interior da marcha progressiva do homem na temporalidade (MANOEL 18).

Dessa forma, prossegue Ivan Manoel: “Se a história humana é a história da sua salvação, cabe à Igreja, na qualidade de Mater et Magistra, e a mais ninguém, a tarefa de estabelecer os parâmetros do ordenamento social, de modo a não permitir que o Mal provoque a perdição definitiva do homem” (MANOEL 21).

Neste caso, o mal era caracterizado pela ideia de progresso da modernidade. Reinhart Koselleck explica como o próprio conceito moderno de história está associado ao conceito de progresso. Na modernidade, a história passa a ser entendida como história universal, diante da qual todos os povos estariam caminhando para um destino único, o que implicou, apoiado pela ideia otimista em relação aos avanços da ciência, a ideia do progresso, a promessa de um futuro de melhoria contínuo para o mundo, um processo que poderíamos considerar como sendo a secularização da história, possível a partir de uma mudança estruturante de consciência de historicidade.

Segundo Koselleck, o tempo medieval era caracterizado pela relação entre a experiência terrena, ou seja, “a experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados” (KOSELLECK 309), que não sofria grandes mudanças ao longo do tempo, e a expectativa, entendida como: “ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto” (KOSELLECK 310). Neste caso, essa expectativa se referia ao tempo perfeito escatológico, ao projetar o futuro de melhoria para o além, na culminação da salvação. Porém, na modernidade ocorre o distanciamento gradativo e contínuo entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa, formando a consciência de história.

São as ideias desenvolvidas a partir desse distanciamento que irão constituir o conceito de progresso. No sentido de que o horizonte de expectativa foi materializado, isto é, a melhoria é ansiada para este mundo, ofuscando e lançando para um dia cada vez mais distante a antiga expectativa escatológica que estava sempre presente: “Do ponto de vista da terminologia, o ‘profecias’ espiritual foi substituído por um ‘progressus’ mundano” (KOSELLECK 316)

Para a Igreja, entretanto, aceitar essa teoria do progresso, era negar seus próprios fundamentos. Daí a necessidade do ultramontanismo agir no sentido de reforçar o tradicional magistério, condenar a modernidade em seu conjunto, centralizar as decisões da Igreja em Roma e submeter o laicado ao controle dos bispos. O objetivo dessa política era preservar a Igreja frente às ameaças do mundo moderno e recristianizar a sociedade ao reposicionar a Igreja como centro do equilíbrio mundial.

4. O glorioso tempo medieval nas folhas d’O Apóstolo

Diante desse contexto, questiona-se, então, de que forma as ideias ultramontanas e antimodernistas foram articuladas no Brasil. O jornal ultramontano mais relevante do Segundo Reinado brasileiro foi o jornal O Apóstolo, lançado em 07 de janeiro de 1866, no Rio de Janeiro. Esse jornal foi fundado pelo monsenhor José Gonçalves Ferreira, reitor do seminário São José, tendo sido seu redator chefe até junho de 1882. De acordo com Camila Pereira, “entre seus colaboradores havia figuras de grande projeção nos meios eclesiásticos de então, como o Monsenhor José Gonçalves Ferreira, o senador Autran de Albuquerque (de Pernambuco), o padre João Esberard e o jornalista Antônio Manuel dos Reis” (PEREIRA 12). Entre os anos de 1869 até 1890, o bispo do Rio de Janeiro, d. Pedro Maria de Lacerda, fez do jornal um órgão oficioso de sua diocese, tornando-o o principal instrumento para a popularização e consolidação das ideias ultramontanas na sociedade brasileira, a partir da Corte.

Ao tomarmos como fonte primária desta pesquisa a publicação jornalística, torna-se importante assinalar algumas considerações metodológicas. Marialva Barbosa explica que uma história da imprensa deve ter como foco investigar quais relações sociais e culturais tornaram possível seu surgimento, destacando as razões apresentadas pelo próprio editorial quanto as motivações não ditas. Isso significa que: “Falar em história da imprensa é, portanto, se reportar ao que se produziu, de que forma, ao como se produziu, para quem se produziu e que conseqüências trouxe essa produção para a sociedade” (BARBOSA).

Nas edições do jornal O Apóstolo, o discurso antimodernista feito a partir do louvor do tempo de outrora, contra o progresso, foi uma constante. Na apresentação do jornal, em sua primeira edição, em 07 de janeiro de 1866, o editorial declarou que havia a necessidade da criação do jornal para que a religião pudesse ser ouvida, “porque ela tem a missão sublime e indeclinável de guiar os povos pela senda do dever”. Quem faria isso seriam os sacerdotes responsáveis pelas edições do jornal. O senso de dever era declarado da seguinte forma: “tomando sobre nossos ombros esta árdua tarefa, cumprimos pois uma obrigação rigorosa e sagrada”. Em seguida, o texto produz a retórica contra o progresso humano, ao caracterizá-lo com símbolos como uma “ferida no coração”; uma “chaga cancerosa, que corrói a humanidade no meio de seus prodígios das ciências, das artes, e da indústria”; uma “verdadeira e nova Babel”; uma “satânica soberba”; uma “confusão de pensamentos”; e uma “liberdade sem freios”. Para os editores, o progresso a ser combatido não era apenas o intelectual, como o racionalismo, mas, como fruto desse, os avanços técnicos e industriais. Essa ideia é expressa no seguinte trecho: “O pensamento do homem voa pelos fios elétricos, em quanto seu corpo corre pelo impulso da locomotiva”. E é por isso que a religião católica, considerada pelos “espíritos do século um anacronismo retrógrado”, precisava ser despertada entre o povo, por meio do jornal. Por fim, para o jornal, a religião era “o amor e a unidade, em quanto que o racionalismo, que traduz toda a licença intelectual, moral e social, quebra todos os laços do dever desde a família até a Divindade” (“O APÓSTOLO” v. 1, n. 1, 1-2).

Na edição de 21 de julho de 1867, o editorial declara ter a preocupação de combater: “O vendaval das liberdade modernas, depois de haver soprado rijo sobre a Europa e parte da América, já começou a açoitar nossa cara pátria” (“O APÓSTOLO” v. 2, n. 29, 3). E, por exemplo, na edição de 21 de maio de 1871, sob o título de A Restauração da França, O Apóstolo menciona qual seria o resultado do combate aos males da modernidade: “Ora eis aqui o ídolo que é necessário seja nacionalmente queimado pela França, se esta quer restabelecer-se e tornar a ser a gens inclyta Francorum de Clovis, de Carlos Magno e de S. Luiz” (“O APÓSTOLO” v. 6, n. 21, 3), ou seja, uma evocação romântica da restauração do tempo medieval.

É necessário destacar que essa referência ao governo de Carlos Magno como tempo áureo para as nações é constante nas edições do jornal. Na edição de 11 de março de 1866, por exemplo, O Apóstolo publicou o discurso do padre Antônio Maria Corrêa de Sá e Benevides, professor de Ciências Naturais do Seminário Episcopal de São José, proferido em 07 de março, por ocasião do início do ano letivo do educandário. O discurso inicia com uma definição do que seria a história: “A história, que na frase de um grave escritor, é o plano da educação do gênero humano, sob a disciplina da Providência”. Essa história, entendida como o modo pelo qual Deus educa o gênero humano, teria demonstrado o seguinte: “o que diremos da França?! Quem não conhece as bases sólidas em que a firmou a nunca desmentida solicitude de Carlos Magno? Quem deixará de reconhecer que ao engrandecimento das ciências e à cultura do espírito deve ela o domínio que tem conservado em todo o mundo?” (“O APÓSTOLO” v. 1, n. 10, 3).

Em seguida, Benevides argumenta que “três pontos se constituíram balizas de nosso rápido caminhar: 1º o clero tem por missão augusta promulgar e perpetuar no mundo a grande restauração da humanidade decaída e resgatada; 2º em todos os tempos tem ele se conservado nesta grande altura; 3º deve continuar por uma sólida educação a obra dos que o precederam”. Diante disso, o preletor disserta sobre como a história atravessou o tempo do paganismo, o tempo das perseguições aos cristãos, até o tempo que teria sido glorioso na Idade Média. A partir dessas considerações, ao enfatizar a importância do seminário, dentro do contexto de reforma ultramontana, Benevides conclui apresentando aquele que seria o “verdadeiro progresso”:

Não acabam porém aqui os esforços da milícia sagrada, e suas vistas levantam-se até o trono dos reis: eles sabiam com efeito que quando se curvavam na pia do batismo as frontes de Clovis, Autharis e Etelberto, não foram só almas que se ganharam para Jesus Cristo, foram nações inteiras que se conquistaram à humanidade. [...]

Assim percorreu o clero sua gloriosa carreira pelos séculos da idade média; foi esse o período de seu esplendor e de sua magnificência; foi esse o tempo em que representou 3l36 o mais brilhante papel na sociedade; as páginas da história o testificam, e nenhum espírito reto, nenhuma pena imparcial, levantará sua voz para contradizer esta verdade. [...]

Imploremos o auxílio do Céu para continuar ele a obra da civilização e do progresso; e nós cheios de entusiasmo pelo bem da mocidade, cheios de santo zelo pelo cumprimento de nossa augusta missão, cooperemos quanto em nós couber para tão sagrado fim: - e quando virmos a religião cobrindo com seu manto as inteligências, e sobre-exaltada por aqueles mesmos que a queriam abater e aviltar, poderemos no auge de inefável contentamento dizer com o grande Wisenan: - Religio vicisti (“O APÓSTOLO” v. 1, n. 10, 4).

Em 11 de fevereiro de 1866, O Apostolo também publicou uma pastoral do bispo de Belém do Pará, d. Antônio de Macedo Costa.7 Tal instrução propunha-se a orientar os diocesanos paraenses com relação ao jubileu concedido pelo papa Pio IX, em 08 de dezembro de 1865. Além da instrução, o bispo também transcreveu uma pastoral do bispo de Orleans, mons. Félix-Antoine-Phibert Dupanloup, dizendo o seguinte: “folgamos de adotar como nossas as ideias expostas com tanta clareza e eloquência por este insigne prelado uma das maiores glórias do Catolicismo neste século” (“O APÓSTOLO” v. 1, n. 6, 8).

Em concordância com Mayara Santos, podemos dizer que a reforma eclesiástica empreendida pelo bispo d. Macedo Costa pode ser analisada pela teoria do neomedievalismo. Isso porque d. Macedo Costa buscava as referências de autoridade para a reforma empreendida em sua diocese na Idade Média. Como diz Mayara:

Uma busca por se apropriar do passado medieval como fonte de autoridade, legitimidade, além do uso de suas bases doutrinárias, modelo moral e familiar, ações combativas, denominação de heresias, símbolos como forma de conceder autoridade à Igreja do presente, sem perder de vista a tentativa de retomar a força e o domínio da Igreja tal como era no medievo, em constantes ameaças e ataques às ideias da modernidade. [...]

A Igreja Medieval que aparece na narrativa é dotada de uma religião quase sem contradições, uniforme, homogênea, que sempre vence seus inimigos, garantindo assim que toda a Europa permanecesse cristã. [...]

O objetivo do bispo era se apropriar de tais valores e implementá-los no Pará, tornar viva novamente a Igreja Medieval, mesmo que o território brasileiro não tenha tido este passado e mesmo que o século fosse o XIX (SANTOS 233-234).

Para d. Macedo Costa, tanto a bula dogmática da Imaculada Conceição quanto a Encíclica de 1864, marcavam a renovação da ordem cristã no mundo, e provava a vitalidade da Igreja Católica, pois contradizia aqueles que a qualificavam como instituição morta ou moribunda. Para ele, “muitos dos que ativamente nos combatem (...) são forçados a reconhecer no meio de suas próprias divisões a unidade da Igreja” (“O APÓSTOLO” v. 1, n. 4, 4). É curioso notar como essa referência a divisões não se restringia aos protestantes, mas a tudo o que era referente aos tempos modernos. Note as referências feitas na apresentação do jornal O Apóstolo sobre a “nova Babel”8 e a “confusão de pensamentos”.

De acordo com d. Macedo Costa, a unidade da Igreja Católica evidenciava-se na união dos diversos bispos do mundo católico a favor da centralidade da Igreja e na submissão ao Sumo Pontífice. Por isso, a concessão de um jubileu universal atrairia para a Igreja “uma torrente copiosíssima de graças”. Esse ato, que celebrava o dogma da Imaculada Conceição de Maria e a promulgação da Encíclica Quanta Cura com o Syllabus Errorum, tinha o objetivo de combater os “erros perniciosíssimos que ameaçavam infectar com seu veneno mortífero a moderna sociedade”. Além disso, enquanto geradora de gratidão pelos verdadeiros fiéis, o jubileu também excitaria “as cóleras da impiedade revolucionária” (“O APÓSTOLO” v. 1, n. 5, 4).

Para d. Macedo Costa, essa “impiedade” era característica de todos os que consideravam o catolicismo como algo retrógrado e inimigo do gênero humano. Afinal, conforme explicado por Mayara Santos, não há no bispo de Belém uma negação do progresso, mas uma correção do seu sentido em direção ao “verdadeiro progresso”, isto é, ao estado de regeneração humana e de felicidade em que toda a sociedade estaria sob o senhorio da Igreja Católica: “O cristianismo não era somente a fonte de salvação, mas oferecia princípios públicos e sociais capazes de levar todo o país ao progresso, alcançando os lugares mais remotos com a civilização” (SANTOS 230).

Dessa forma, é possível entender a ênfase dada a uma ideia cruzadista de combate àqueles que espalhavam o “veneno” na sociedade moderna. Dentre esses grupos, que precisavam ser combatidos, estavam os protestantes. De acordo com Mayara Santos, por meio do jornal A Estrela do Norte, de publicação da diocese de Belém do Pará, d. Macedo Costa arregimentava um combate contra o protestantismo por esse ser um movimento revolucionário contra a Igreja de Jesus Cristo, principalmente em razão do esforço missionário protestante. O bispo conclamava os paraenses para não receberem o material difundido por protestantes, tanto as bíblias quanto todas as suas outras publicações. Assim,

Os embates contra o protestantismo são travados em defesa da unidade da Igreja que deveria ser preservada, como era antes deles existirem, no medievo. O controle sobre o que era lido e divulgado na sua diocese segue os mesmos princípios estabelecidos no medievo contra as heresias. Não há tolerância, há a ordem da igreja. O discurso do bispo contra o protestantismo se apropria da legitimidade e da auctoritas medieval (SANTOS 220).

Na edição de 29 de agosto de 1869, O Apóstolo publica uma pastoral do bispo d. Pedro Maria de Lacerda, do Rio de Janeiro, com propósito de anunciar o novo jubileu concedido pelo papa Pio IX, devido à Celebração do Concílio Ecumênico de 1869. Nessa pastoral, Lacerda expressa sua alegria por poder participar de um Concílio Ecumênico passados trezentos anos desde o último, em Trento. Além disso, ao louvar a unidade da Igreja Católica contra as divisões dos protestantes, afirma:

Mas oh! Poder da Igreja! Esses inimigos depois do golpe levado em Trento, quais árvores, que foram feridas pelo raio, definharam, morreram, mirraram-se; perderam toda seiva, toda vida de fé e de obediência, e caíram divididos em milhares de seitas subdivididas em outras muitas entre si rivais, nada crendo, nada praticando, nada pregando, senão liberdade de pensamento, liberdade de crença o de culto, liberdade de fé e de consciência em tudo que é de religião (“O APÓSTOLO” v. 4, n. 35, 273).

5. Neomedievalistas, restauracionistas e a ideia de realinhar a história no caminho certo da história da salvação

Ao longo dos seus primeiros anos de publicação, o jornal O Apóstolo teve como um dos seus principais interlocutores o jornal Imprensa Evangélica. A Imprensa Evangélica foi o jornal protestante de maior longevidade do Império do Brasil, fundado em 1864, tendo encerrado suas atividades em 1892. A responsabilidade pela produção desse periódico foi da missão americana presbiteriana no Brasil, da Junta de Missões Estrangeiras da Igreja Presbiteriana dos EUA, sediada em Nova York. Era por meio desse jornal que as ideias protestantes de tradição norte-americana foram divulgados e alcançaram o maior número de brasileiros.

Na verdade, de acordo com Pedro Feitoza, “o periódico em si circulou em diferentes comunidades Protestantes Lusófonas” (tradução nossa).9 Some-se a isso o fato do projeto da Imprensa Evangélica também ter contado com o apoio de “uma densa rede que incluía organizações evangélicas sediadas em Londres, tais como a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira e a Sociedade de Tratados Evangélicos, imigrantes portugueses em Illinois e missionários britânicos, interligava o trabalho protestante no mundo atlântico lusófono” (tradução nossa).10

Uma das principais ênfases nas edições da Imprensa Evangélica era o incentivo ao progresso, entendido como o desenvolvimento industrial, com a mais ampla garantia das liberdades civis, políticas e religiosas, e guiado pela expansão missionária protestante. Some-se a isso a defesa de que o principal modelo de progresso a ser seguido pelo Brasil eram os Estados Unidos da América.

Isso significa que, no propósito desta pesquisa, a Imprensa Evangélica não pode ser compreendida apenas como um periódico que travou diversos debates com o jornal O Apóstolo. Na verdade, tanto O Apóstolo quanto a Imprensa Evangélica materializavam visões distintas sobre a temporalidade. Católicos e protestantes respondiam ao contexto da modernidade. Ou seja, os grupos religiosos que se encontravam ou se chocavam no Brasil imperial, especificamente, católicos e protestantes, apropriaram-se e reelaboraram conceitos conforme suas respectivas consciências de temporalidade em relação às suas concepções sobre a história da salvação.

Richard Hughes, ao explicar essa questão da consciência temporal entre protestantes do século XIX, propõe o conceito de restauracionismo. Esse conceito busca explicar a tentativa romântica de determinados grupos protestantes ao tentarem resgatar e restaurar o cristianismo primitivo, em sua moral e doutrina. Conforme explica:

O restauracionismo envolve a tentativa de recuperar alguma crença ou prática importante da época dos puros primórdios sobre os quais os crentes estão convictos de que foi perdida, contaminada ou corrompida. O restauracionismo também pressupõe que em algum momento da história cristã ocorreu uma queda ou apostasia. (tradução nossa).11

Ou seja, essa ideia tinha como um dos seus pilares centrais a rejeição à noção de tradição cristã, por ter sido corrompida no processo histórico. No período da expansão missionária protestante, no século XIX, a ideia restauracionista não tinha como foco apenas a igreja, mas toda a sociedade. O progresso era entendido de forma teológica, como uma caminhada no rumo certo em direção ao retorno de Jesus Cristo.

Some-se a isso o fato de que os missionários protestantes atuantes no Brasil imperial defendiam a ideia dos Estados Unidos serem o modelo de civilização a ser alcançado pelas nações evangelizadas por uma razão igualmente explicada pelo restauracionismo. De acordo com Richard Hughes, os Estados Unidos, por não terem sido formados pela longa tradição da Igreja, isto é, uma história de degeneração do cristianismo puro do Novo Testamento, tornavam-se o marco zero de uma autêntica civilização cristã e, por isso, tinham a responsabilidade de “guiar outras nações nas trilhas dos tempos primitivos. E então, quando a liberdade e a democracia tivessem atingido todo o globo, a pirâmide estaria completa e o milênio estaria começando” (HUGHES and ALLEN 101-102).

Ainda assim, acrescenta Franklin Littell, ao escrever um capítulo na obra editada por Richard Hughes, esses missionários viveram o dilema da modernidade. Afinal, não era simples manter a defesa do progresso técnico e científico com a ideia da restauração do modo de vida dos cristãos neotestamentários: “A postura do primitivismo, que olha para trás em busca de suas normas, foi substituída pelo espírito da modernidade, olhando alegremente para um futuro de mudanças progressivas e ordenadas” (tradução nossa)12. Esse dilema permanecerá em todas as ações dos missionários protestantes no Brasil.

De acordo com Pedro Feitoza, essa visão, ainda que aparentemente controversa, motivou a produção da Imprensa Evangélica, isto é, “restaurar a pureza imaculada da era apostólica nas suas formas eclesiásticas, ensinamentos morais e experiências espirituais, animando os convertidos e os especialistas religiosos do mundo moderno” (tradução nossa).13

A imagem dos missionários protestantes americanos como agentes do progresso foi percebida e defendida por políticos liberais do Segundo Reinado. Um dos maiores exemplos foi o político alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos, defensor da imigração protestante e das missões evangelísticas no Brasil, com o objetivo de fazer o país alcançar o progresso.

Deve ser assinalado que, na década de 1860, o contexto político brasileiro atravessou um processo de renovação dos partidos liberais. Congruente a essa renovação, houve uma renovada produção intelectual de linha liberal no Brasil. Dentre os principais autores liberais desse período está Tavares Bastos. Em sua obra Cartas do Solitário (1862), que, de acordo com Marcello Basile: “constitui a mais completa exposição feita até então dos princípios liberais” (BASILE 254), Tavares Bastos combate as ideias propagadas pelos ultramontanos, vistas como obstáculo para o progresso do Brasil:

Dizem os padres e os beatos que o amortecimento das crenças é, no Brasil como na Europa, o resultado próximo do regime livre, político-social, dos tempos modernos. [...]

Sim, foram os horrores do santo ofício, os absurdos da censura, o ridículo de um culto exterior exagerado, as pretensões clericais e o espetáculo, ainda hoje subsistente, da imoralidade, da intolerância e do feudalismo reinando em Roma, foram essas as causas tristíssimas da reação ímpia que hoje ostenta-se.

Como, porém, pretende-se combater este mal? Justamente ressuscitando as mesmas práticas embusteiras e atentatórias da liberdade humana, que lhe deram nascimento. [...]

Essa propaganda, meu amigo, que tem o seu clube na Santa Casa de Misericórdia, as suas filiais em todas essas irmandades e corporações religiosas que aí formigam, e os seus agentes no padre lazarista, na irmã de caridade, nos tesoureiros, procuradores, administradores, provedores, etc.; essa propaganda de crucifixos e enormes rosários pendentes, de opas, tochas e foguetes, filha legítima do cilício, do sambenito e da fogueira; essa propaganda sinistra está intimamente sobre nossas cabeças, ameaçando substituir o luzeiro da liberdade pela cegueira do fanatismo, e transformar a sociedade brasileira no vasto convento que já foi Portugal. [...]

Levantemo-nos, meu amigo, e apressemo-nos em combater o inimigo invisível e calado que nos persegue nas trevas. Ele se chama o espírito clerical, isto é, o cadáver do passado; e nós somos o espírito liberal, isto é, o obreiro do futuro (BASTOS 59-61).

A retórica do progresso impunha tanto aos políticos liberais, como Tavares Bastos, quanto aos missionários protestantes a ênfase no combate ao tempo medieval, representado pelos ultramontanos. A título de exemplo, pode-se citar a edição da Imprensa Evangélica, de 02 de novembro de 1867, sobre o progresso na Austrália. Para o editorial, a Austrália só havia conquistado o progresso em razão dos “sãos preceitos bebidos no cristianismo que se deriva da fonte primitiva”, fruto da expansão missionária. O Brasil, entretanto, ainda se mantinha em uma luta para alcançar o progresso em razão da “luta estéril entre os progressistas, que mal sabem o que querem, e os retrógrados, que trabalham por vasar a geração presente nos apertados moldes dos tempos feudais” (“IMPRENSA EVANGÉLICA” v. 3, n. 21, 165). Isso justificava a necessidade de missões protestantes em terras brasileiras, isto é, para facilitar o progresso brasileiro.

Na edição de 15 de janeiro de 1870, a Imprensa Evangélica, ao comentar sobre o Concílio Vaticano I, diz que “se for decretado o Syllabus, o resultado não será menos funesto para as pretensões de Roma; porque importará em decretar o divórcio formal entre a igreja romana e os governos civilizados do mundo que prezam o progresso moral da humanidade” (“IMPRENSA EVANGÉLICA” v. 6, n. 2, 10).

Contudo, para o nosso objetivo, um dos debates mais instigantes entre os dois jornais ocorreu em razão de séries publicadas nas folhas da Imprensa Evangélica com foco na história eclesiástica. No ano de 1868, a folha protestante publicou, em oito edições, a série intitulada Origem e Progresso do Romanismo, entre 01 de agosto de 1868 a 21 de novembro de 1868. Na edição de 05 de outubro de 1868, o articulista declarou: “No meio destes séculos de trevas, foi estabelecida na igreja romana a doutrina da transubstanciação. [...] Faltar-nos-ia, porém, o espaço preciso para descrever completamente o progresso do erro nestes séculos de escuridão e ignorância” (“IMPRENSA EVANGÉLICA” v. 4, n. 19, 146).

Por isso, era necessário investir em conteúdo sobre história da Igreja. Os objetivos, para o editorial evangélicos, eram evidentes e foram expressos na edição de 19 de outubro de 1868:

Porém quem estudar a história da igreja, achá-la-á não só interessante e divertida, senão também muito útil para guardar e fortificar o entendimento contra os erros introduzidos tão frequentemente sob o pretexto de serem uma nova descoberta; as quais, porém, sendo examinadas, quase sempre mostram-se ideias há muito abandonadas, e de novo apresentadas agora com alguma modificação e talvez com um novo nome. [...]

Mas há outra razão ainda porque o estudo da história da igreja deve ser recomendado e promovido: esta é o adquirir o conhecimento do verdadeiro caráter da igreja romana. [...]

À vista pois da importância, utilidade e interesse do assunto, pretendemos no número próximo futuro deste periódico, encetar a publicação de uma resumida história eclesiástica, principiando com os tempos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e estendendo-se até os tempos modernos. Pedimos a atenção de nossos leitores para estes artigos, e prometemos-lhes que procuraremos ser imparciais e verídicos na narração dos sucessos que compõem a história da igreja de Jesus Cristo na terra” (“IMPRENSA EVANGÉLICA” v. 4, n. 18, 143).

Na edição seguinte, em 05 de outubro de 1868, inicia-se a publicação da série intitulada História Eclesiástica, cuja última publicação ocorrerá em 01 de julho de 1871. Os debates entre O Apóstolo e a Imprensa Evangélica eram comuns, porém, agora o foco será debater a “verdadeira história” da Igreja.

Em resposta, na edição de 06 de março de 1870, o jornal ultramontano protesta contra seu interlocutor: “A Imprensa Evangélica, fiel à sua seita e ao seu programa, protesta contra toda a verdade, até contra a verdade histórica!”. Porém, “combater ponto por ponto tal história seria trabalho insano e fastidioso”. Na impossibilidade, portanto, de criticar em detalhes a história produzida nas folhas do jornal evangélico, o editor católico escolhe um único ponto a ser criticado, qual seja: “E a nossa prova versará unicamente sobre o século mais caluniado da Igreja, o século X” (“O APÓSTOLO” v. 5, n. 10, 77).

Em resposta, a Imprensa Evangélica, na edição de 16 de abril de 1870, além de reforçar a ideia da degradação da igreja no período medieval: “Quão torpe era a face da Igreja romana, quando em Roma dominavam as mais poderosas e sórdidas prostitutas!” (“IMPRENSA EVANGÉLICA” v. 6, n. 8, 57), assim como O Apóstolo, também utiliza o recurso persuasivo da referência a autoridades historiográficas para refutar o adversário.

Essa disputa pela “verdade histórica” era central tanto para os reformadores católicos ultramontanos quanto para a apologética missionária dos protestantes. O tempo submetido à religião se torna a questão mais relevante para as disputas religiosas do século XIX. Em meio às discussões sobre os tempos modernos e o progresso, realinhar o rumo da sociedade nos trilhos da história da salvação é o principal objetivo tanto de católicos quanto de protestantes, porém, a partir de princípios norteadores distintos.

O primeiro bispo ultramontano nomeado pelo imperador d. Pedro II, d. Antônio Ferreira Viçoso, em 1853, já expunha essa preocupação. Conforme citação de Germano Campos, que teve acesso às edições do jornal O Romano, publicação de Mariana, Minas Gerais, do ano de 1853, d. Viçoso expressou a sua convicção sobre os objetivos da reforma eclesiástica em Minas Gerais da seguinte forma:

Certamente a questão não é a de ressuscitar a Idade Média: sabemos bem, e aqueles que nos opõe esta estúpida apreensão o sabem melhor do que ninguém. Mas o que é útil é ressuscitar os sentimentos de justiça, de admiração e de amor que merecem os grandes homens e os grandes santos que o catolicismo inspirou, além das grandes instituições que o catolicismo encheu com seu espírito. [...] O patrimônio da verdade histórica já está reconquistado mais do que pela metade. A história-mentira, a história-paródia, a história-declamação, à maneira dos Voltaires, dos Dulaures e dos Schillers seria apenas tolerada hoje em um folhetim (CAMPOS 102).

Assim, resta evidenciado que as ideias da reforma católica ultramontana no Brasil do século XIX foram desenvolvidas, em uma primeira instância, a partir da necessidade de resgate e valorização da “verdadeira história” da Igreja, aquela que indicava os grandes desenvolvimentos sociais ocorridos durante o medievo. Na disputa pelo tempo e pela história, entretanto, não se pode ignorar como essas ideias também foram desenvolvidas a partir de um confronto, tanto contra políticos liberais defensores da ideia do progresso moderno quanto com os protestantes que rejeitavam a tradição da igreja desenvolvida no período medieval, como uma história de degeneração do cristianismo primitivo.

Esses debates revelam um tipo de fazer histórico confessional, no qual a história sempre é vista como história da salvação. João Rangel argumenta que, nessas perspectivas, a história sempre é tomada de forma instrumental e utilitária, para reafirmação de concepções e visões de mundo dos especialistas religiosos, conforme diz:

A história que importa aqui é a da “salvação”. Conceitos como “ortodoxia” e “heresia” são tomados a priori – como características intrínsecas na história, e não produto dela. A história avança em razão de um imperativo, uma ortodoxia (também compreendida como vontade de Deus) que vai se impondo (RANGEL 41).

6. Conclusão

Os estudos sobre o neomedievalismo ainda são recentes, apesar disso, têm gerado pesquisas que problematizam a noção de tempo e história na modernidade. Definitivamente, o tempo da história não é o tempo físico. Isso se torna ainda mais complexo ao adicionarmos o elemento religioso e, no caso do texto apresentado, cristão.

Cristãos de diversas tradições têm como elemento comum a compreensão de estarem inseridos em uma longuíssima história da salvação, uma narrativa iniciada com a criação do homem na terra, seguida pela queda no pecado, a redenção na morte de Jesus Cristo, na Judeia, durante o governo de Tibério César, no primeiro século, e a culminar no retorno do Messias para estabelecer seu reino eterno.

Assim, a história para os cristãos é a história da salvação. Na conjuntura do século XIX, com o desenvolvimento dos conceitos de modernidade e progresso, diante das mudanças ocorridas no Brasil e no mundo, autoridades cristãs buscaram realinhar o rumo da história para o sentido do progresso correto. Entre católicos brasileiros, a partir de interesses do próprio governo monárquico, ocorreu a reforma eclesiástica ultramontana.

Bispos ultramontanos, alinhados com o discurso antimodernista do catolicismo mundial, utilizaram ferramentas próprias da modernidade, como a imprensa, para promoverem a valorização da tradição católica, da autoridade pontifícia, da independência da igreja diante do governo civil, além de outras ideias que faziam referência explícita ou sutil ao período medieval, em busca de reviver o tempo considerado áureo da civilização cristã.

Para isso, era necessária a valorização da história, dentro de uma concepção própria da modernidade de entender a história como mestra da vida e que, por isso, precisava ser contada da maneira correta. A disputa pela “verdadeira história” da tradição cristã foi motivo de embates entre protestantes e católicos no contexto estudado. Protestantes que, por sua vez, também tinham uma concepção própria de realinhamento da história das sociedades em direção ao progresso a partir do resgate romântico de um cristianismo primitivo que teria ressurgido nos Estados Unidos da América.

A proposta deste artigo foi dar uma direção, a partir da análise da imprensa religiosa, sobre a problemática da relação entre temporalidade e religião a partir do conceito de neomedievalismo. E a expectativa deste autor é que este texto provoque no leitor outras questões não respondidas, no objetivo de surgir novas pesquisas a demonstrar e explicar como essas ideias foram desenvolvidas desde o século XIX e ainda repercutem em nossos dias.

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1. É necessário esclarecer que o Syllabus, com suas 80 proposições de condenação dos aspectos considerados deletérios da modernidade para o magistério católico, foi formulado a partir da reunião de 32 documentos eclesiásticos emitidos ao longo do pontificado de Pio IX, entre 1846 e 1864. Esses documentos representavam os principais desafios enfrentados pela Igreja Católica no século XIX. Como diz Denzinger: “Certas proposições de natureza jurídica ou eclesiástico-política são em grande parte ligadas às circunstâncias do tempo” (DENZINGER 632).

2. É interessante notar como a palavra progresso, como algo a ser rejeitado pela Igreja aparece ao longo das 80 proposições do Syllabus. A proposição mais significativa é a de número 80, a último erro do liberalismo hodierno que deve ser refutado: “O Romano Pontífice pode e deve reconciliarse e fazer amizade com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna” (DENZINGER 641).

3. Weigel defende que a melhor forma para explicar a história da relação entre a Igreja Católica e a Modernidade é por meio do recurso narrativo da ironia. Dessa forma, lembrando-nos do que foi dito por Hayden White: “Na ironia a linguagem figurada torna a dobrar-se sobre si mesma e põe em questão suas próprias potencialidades para distorcer a percepção. É por isso que as caracterizações do mundo vazadas no modo irônico são amiúde consideradas intrinsicamente refinadas e realistas” (WHITE 51).

4. “Death of religious conviction” (WEIGEL 14).

5. “Even more ironically, the Church’s rediscovery of those truths might, just might, put Catholicism in a position to help secular modernity save itself from its own increasing incoherence” (WEIGEL 51).

6. Referência ao Édito de Milão promulgado pelo imperador romano Constantino em 313 que concedeu tolerância aos cristãos dentro do Império.

7. Bispo de Grão-Pará, sagrado bispo em 21 de abril de 1861, pelo Internúncio Mons. Mariano Falcinelli, assumiu a diocese em 11 de agosto de 1861. Sendo um dos bispos ultramontanos mais atuantes, ficou conhecido pela historiografia por ter sido um dos protagonistas da Questão Religiosa da década de 1870. Em 1873 recebeu ordem de prisão pelo Supremo Tribunal de Justiça por ter se negado a suspender as interdições às irmandades que não aceitaram excluir os membros maçons de seus quadros.

8. A referência é à narrativa bíblica de Gênesis 11, na qual os homens, constituídos de uma única cultura linguística, teriam tentado construir uma torre que tocasse o céu. Em resposta, Deus intervém confundindo a língua dos homens e provocando a dispersão linguística e geográfica dos homens.

9. “The periodical itself circulated in different Lusophone Protestant communities” (FEITOZA, “Experiments in Missionary Writing: Protestant Missions and the Imprensa Evangelica in Brazil, 1864–1892” 602).

10. “A thick network comprising London-based Evangelical organisations, such as the British and Foreign Bible Society and the Religious Tract Society, Portuguese immigrants in Illinois and Brazil, and British missionaries linked together Protestant missionary work in the Lusophone Atlantic world” (FEITOZA, “Experiments in Missionary Writing: Protestant Missions and the Imprensa Evangelica in Brazil, 1864–1892” 602).

11. “Restorationism involves the attempt to recover some important belief or practice from the time of pure beginnings that believers are convinced has been lost, defiled, or corrupted. Restorationism further assumes that at some point in Christian history a fall or apostasy occurred” (HUGHES x).

12. “The stance of primitivism, which looks backward for its norms, was replaced by the spirit of modernity, looking blithely toward a future of progressive and orderly change” (HUGHES 61).

13. “To restore the pristine purity of the apostolic era in its ecclesiastical forms, moral teachings and spiritual experiences animated converts and religious experts in the modern world” (FEITOZA, “The Middle Line of Truth: Religious and Secular Ideologies in the Making of Brazilian Evangelical Thought, 1870–1930” 1040).